sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Pirangagem e matutice

"Pirangueiro" é um adjetivo frequentemente usado no Agreste Meridional de Pernambuco para descrever um cidadão parcimonioso quando se trata de despender qualquer soma em dinheiro. Mais espraiado no universo linguístico brasileiro, "matuto", por sua vez, é o qualitativo atribuido à pessoa, geralmente de origem rural, em situação de desconforto social. Ambos de caráter discriminatório, usados em ataques proferidos por consumistas urbanóides. A mistura dos dois, de algum modo, se aplica a mim, por questões de origem, condição e circunstância.

Desde que fiquei uma semana sem dinheiro, logo que cheguei por estas paragens, naquele episódio já relatado da senha bloqueada, estou super, mega, hiper financeiramente precavido. Antes de comprar qualquer coisas, multiplico por dois (pra simplificar a relação real x dólar canadense) e, frequentemente, concluo que é caro e deixo pra depois. Mesmo os itens essenciais passam por minunciosa avaliação. Por isso, até hoje não havia aberto o vinho que comprei pra celebrar o desbloqueio do cartão, porque os abridores de garrafa por aqui estão pela hora da morte...

Hoje, finalmente, aproveitando o gás de ter concluído um argumentative research paper, de 20 páginas em bom inglês acadêmico (até que a professora me devolva na segunda, com um caminhão de críticas) e liberei geral: comprei um sacarrolha com designer futurista, que custou a fortuna de $ 10 dólares. Agora há pouco, junto com um macarrão que é a minha receita número dois de um cardáplio de três pratos, comecei a luta para usar meu novo equipamente. Tentei, tentei e nada. "Que bosta, será que isso não presta?" Depois de arranhar o metal que lacra o gargalo e a boca da garrafa, numa operação de uns bons 10 minutos, me dei conta que a porcaria era apenas rosqueada, sem rolha portanto, e que poderia ter sido tomada umas cinquenta vezes nesses quase dois meses de espera inútil.

Pra completar, claro que o vinho é uma espécie de chapinha canadense e, a partir de amanhã, vou arriscar a minha receita número quatro, que é um arroz roxo, pra lá de esquisito, o único que achei na internet que leva vinho tinto seco e que, não sem razão, por enquanto não tem nenhum comentário ou avaliação... Agora se a professora aprovar meu artigo, "juro-na-cruz-de-Deus", como dizíamos lá em Açúde Novo, que volto naquela adega linda e compro um vinho decente, com rolha e tudo.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Querido papai Noel,

Esse ano quando você e as renas estiverem zanzando pelo céu morno do sul, eu estarei aqui, perto da sua casa, engrossando a batata da perna, como quem atravessa o arreial da Praia do Francês, só que branco, gelado e fundo. Se brincar, bate no joelho.. Já sei que meu humor não vai estar lá essas coisas, por isso adianto para pedir de presente uma duziazinha de cartas. Mas tem de ser de papel, com selo, carimbo e tudo o mais. Se quiser mandar cartão enfeitado pode, mas eu gosto mesmo é de letra. Muita letra. Até garrancheira eu adoro. E pode mandar conversa fiada que eu aprecio também. Como os correios daqui não são lá essas coisas, por favor Noelzinho do meu coração, despache de uma vez as minhas cartinhas, viu?

Lá vai o endereço:
Walderes Brito
428
320 Sherbrook Street
Winnipeg, Manitoba, Canada
R3B 2W6

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

"Honrarás tua mãe..."

Em alguns dias completará um mês que tia Senhora, nossa tia-avô paterna quase centenária, está de casa nova. Dessa vez, coube a Eliane, primogênita da nossa casa, e sua família, edificar a casa de tia no que antes era uma área nos fundos do terreno onde moram. Com este movimento, a quarta geração da nossa família experimenta o prazer e o desafio de conviver com uma mulher cheia de humor, vitalidade, memória e muita teimosia também. A primeira geração foi a do meu avô Jorge, irmão de tia, que a acolheu pouco depois que eu nasci, num tempo de muita penúria em nossa região. Lá pelo meio do caminho, a segunda geração, a do meu pai, minha mãe e minhas tias, em diferentes circunstâncias, fizeram a mesma experiência. Agora é a vez da Eliane e com ela, não apenas a terceira, mas também a quarta geração (meus sobrinhos e sobrinha) tocarem a vida na companhia de tia Senhora.
Em toda essa trajetória, tia tem sido autônoma e trabalhadora ao extremo, ao mesmo tempo em que é uma controvérsia em pessoa: ranzinsíma com uns, humoradíssima com outros, sem nenhuma habilidade ou vontade de disfarçar antipatia ou bem-querer. Como, felizmente, estou na bando dos bem-quistos, um dos meus momentos preferidos toda vez que volto a São Bento do Una, minha cidade natal, é passar horas com tia Senhora, ouvindo as mesmas velhas histórias, contadas com precisão científica, sobre a epidemia que matou a mãe e dois irmãos dela em 1925, as viagens a pé de Pernambuco para Juazeiro do Padre Cícero no Ceará nos anos 1930, os serviços que ela prestava para uma senhora japonesa em São Paulo, nos anos 1950 e os anos que trabalhou vendendo água em lombo de burro, em Garanhuns, na década seguinte.
Também gosto das ciências de tia Senhora, abstraidas da empiria cotidiana, como a teoria de que as hortências ganham as cores do vestido da mulher que as plantou ou a perigosa hipótese de que muito sangue provoca dor nas pernas. Essa última foi concluída depois que ela furou o pé mexendo nos milhões de trecos que são guardados porque "um dia a gente pode precisar" e, depois disso, a dor daquela perna passou. Logo, o que causava a dor era o sangue perdido no acidente: "Dá vontade de furar a outra perna", diz ela. Há também a teoria de que a asa-branca que viveu mais de 15 anos veio a óbito porque ela (tia Senhora) colocou veneno para matar as muriçocas, as muriçocas cairam na gaiola, a ave comeu as muriçocas e morreu envenenada tambem. Já a longevidade do galo-de-campina que já poderia ir para o exército, porque tem impressionantes 18 anos, será assunto para um professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde um dos meus sobrinhos estuda Veterinária, porque fora o método de tia Senhora, ao que parece não há registro na literatura de passarinho com tantas eras.
Toda a minha gratidão a Eliane, meu cunhado e meus sobrinhos que agora abriram a casa para fazer por tia Senhora o que seria igual responsabilidade de uma dezenas de nós outros descendentes, e o meu desejo de que essa convivência seja tão rica e prazerosa como foram os anos em que vivemos juntos, antes de eu me mudar para Goiás, ou as minhas tardes de férias em São Bento transitando nos universos fabulosos dessa mulher absolutamente singular.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Aparando a juba

Depois de muito vexame matinal, por causa de minhas melenas esgadanhadas, graças a uma combinação perigosa de carequice, mais cabelo grande e amassado por uma noite de sono, fui hoje ao salão de beleza. Era uma cabeleireira oriental, mas podia ser até marciana que eu encarava: entrei mesmo foi pelos 10 dólares estampados na porta, que eu ainda acho caro, mas pelo menos está longe dos 25 que eu vi na porta de outro estabelecimento do ramo, que me fez evitar até de passar na rua. Sem falar dos outros que nem estampam preços e isso já é um aviso de que são proibidos para bolsistas carecas.

As instalações no salão de hoje, convenhamos, não são lá muito higiênicas, a começar pelos tufos de cabelo sobre a mesa onde tive de depositar meus óculos. Minha esperança é que piolho não se crie no gelo... "Como você quer que corte?" - Perguntou a moça. "Não tenho muitas opções", sapequei de cá, com meu inglês manco, mas já querendo ser metido a espirituoso.

Chegamos rápido a um consenso de que deveria ser baixo e pronto. No meio do caminho, a checagem de praxe "se está bom" e um novo acordo de que podia cortar ainda mais. "Outros 10 dólares só daqui a dois meses" - pensei... No fim, fiquei com um indeciso topete, parecendo o galo-de-campina de tia Senhora, mas ainda assim acho que amanhã chegarei menos esquisito para a primeira aula.

A possibilidade resolver a paradinha do cabelo com um banho antes de ir pra escola está totalmente descartada. Entre outras coisas, temo o congelamento tácido da penugem que me resta e virar uma espécie de Neimar, com uma crista-picolé formada no percurso de casa para a escola... Melhor não arriscar. Banho, só no final da tarde, com tempo de sobra para ter certeza de que tudo está realmente seco, antes de pôr o pé na rua. Além do mais, como dizia "ti-Mané-Domingo", outro lendário tio-avô da minha coleção, "nunca ouvi falar que ningém morreu de grude; mas de banho, eu já ouvi muito...".

sábado, 3 de novembro de 2012

Matissando os espaços visuais


Uma queixa comum dos visitantes virtuais do meu quarto são as paredes imaculadas que dão ao espaço um ar de cela de presidio recém-inaugurado. Confesso que isso também me incomodava um pouco, menos ao vivo, mais quando via a minha própria imagem enquadrada pela câmera do computador nas conversas com o pessoal de casa... Mas não era assim um incômodo grande o suficiente para me fazer tomar uma providência, antes de 50 dias e dois museus. Ontem, finalmente, tomei coragem de gastar uns cinco dólares com cartolina e fita adesiva e hoje pela manhã, antes de lavar o rosto, sapequei uma obra de arte que vai me servir de cenário para as próximas conversas por skype, tendo ainda à frente da minha mesa de trabalho um painel com as sete fotos que trouxe de casa e que estavam guardadas no envelope até hoje.

A falta de iniciativa sobre o tema se deve a três fatores, os dois primeiros de ordem econômica: (a) O que poderia ser feito sem ter de pagar uma nova pintura do quarto na hora de mudar ou ir embora? (b) O que poderia ser uma boa solução estética e prática, considerando minha fraca desenvoltura no campo das artes visuais: pregar um pano colorido na parede? comprar uma gravura em um museu? comprar papel branco, tinta, pincel e fazer uma pintura? comprar um quadro de avisos e fixar coisas com tachinhas? encher a parede de texto, como a moça/rapaz de "A pele que habito?"... Antes de falar do terceiro fator, preciso dizer que a compra de cartolinas e fita adesiva deve-se, basicamente, ao documentario sobre o pintor francês Enri Matisse (1869-1954), que assisti na Winnipeg Art Gallery, empurrado definitivamente pela visita que fiz ontem ao Manitoba Museum. Cores básicas, nenhuma ordem pre-estabelecida, ampla possibilidade de ajustes e negociação com erros, sem nenhum dano à pintura da parede: era tudo o que eu queria e possivelmente daria conta de executar.

O terceiro fator retardante da minha incursão pelo mundo da arte e da decoração de interiores diz respeito ao meu processo psicológico/ mental/ existencial de instalação nesse novo espaço. Colocar um enfeite na parede tem um sentido de construção de casa, o que, no meu caso, nunca pode ser feito rapidamente, porque significaria um impossível desapego à minha própria casa, quase um desamor e uma traição; finalmente, a fixação de imagens no parede do meu quarto quer dizer também que os justificados receios iniciais foram atenuados e que estou medianamente seguro de que vou conseguir viver aqui o tempo planejado: isso, evidentemente, não poderia ser feito antes do kairós - hora certa, tempo oportuno.