quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Tempo de passagem

Nesses dias vou inteirar seis meses ou o meio do caminho da minha estada em Winnipeg, justo no tempo em que o inverno dá sinais de finitude, perceptível na luminosidade cada vez mais larga dos dias, no passo desacelerado dos transeuntes e nas primeiras águas de degelo no passeio público. Desde que cheguei, acordo para os lados de onde brota o sol, mas sinto que estou na minha sala em Goiânia, portanto mirando o Oeste e ainda não houve bússola que corrigisse este meu senso "mareado".
Nas tardes, quando o cansaço das leituras me tira da mesa de trabalho, um dos meus prazeres correntes é simplesmente ficar de pé e admirar a gente que parece voltar pra casa sob uma luz laranja, como a dos sóis de agosto no Planalto Central do Brasil. Hoje, completou a cena, esse moço com urgência de leitura, a ponto de não fechar o livro nem na travessia da rua, muito menos na segurança da calçada. A rapidez da minha consciência de que aquilo era belo e a lentidão da minha máquina permitiram apenas dois cliques, mas é como se dois cenários completamente distintos tivessem sido montados quando, na verdade, fora dados dois ou três passos, não mais, testemunhados através de um vidro ainda embaçado por cem ou mais dias ininterruptos muitos dígitos abaixo de zero.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Gente do bem

Detalhe de obra do Moma
As três primeiras surpresas e boas impressões de New York me foram dadas por mulheres e dizem respeito a "gente". Para um matuto sem conserto como eu, megacidade é sempre sinônimo de impessoalidade, individualismo e até ruindade: gente querendo aplicar golpe, roubar e fazer outras maldades. Tenho visto, felizmente, que nem sempre é assim.
No caso de New York a primeira interação aconteceu durante a viagem, quando encontrei uma senhora oriental, residente em Winnipeg e que fizera o mesmo percurso que eu, incluindo o transporte público do aeroporto LaGuardia até a ilha de Manhattan. Primeiro ela buscava o balcão da Delta no aeroporto de Ottawa, onde fizemos conexão, e depois carregava sem poder uma mala, uma mochila e uma caixa comprida com rodinhas com o que julguei ser, no mínimo, uma viola de gamba. Nos dois casos, ofereci ajuda, primeiro indicando o balcão e depois carregando a mala. Então chegou a vez dela me ajudar, mobilizando metade da tripulação do ônibus, para identificar qual seria a minha parada, para fazer conexão com a linha "C" do metrô. Pelo caminho descobri que ela é professora de música, tem dois filhos e viajava para ver o recital de um que estuda em New York e da outra que estuda em Chicago, para onde arrastaria suas malas dias depois. Essa primeira mulher desceu antes de mim, mas somente depois de providenciar uma família hispânica para me "adotado", com acompanhamento até o elevador da Rua 125, no Harlem, onde encontrei a segunda mulher.
Essa, de quem também não sei o nome e a quem tampouco tive chance de me apresentar, teve um encontro comigo do tamanho de uma viagem de elevador que, aliás, só aconteceu por causa dela própria. Junto comigo, primeiro, entrou no cubículo um casal de malas vermelhas e fala francesa. Entramos e ficamos os três, abobalhados, sem saber o que fazer com o elevador que, sistematicamente, fechada a porta, dava uma chacoalhadinha, uma pausa e abria a porta no mesmíssimo lugar. Numa dessas operações, a moça "francesa" conseguiu interromper o fechamento da porta para "a" minha personagem entrar. O gesto foi suficiente para ela fazer muitos agradecimentos e dizer com alegria que ainda existe gente boa no mundo e etc., até o elevador repetir a mesma palhaçada: "Oh, oh!", disse a colega de viagem número quatro. Nova tentativa e nada. Logo ela avistou um saco plástico na porta do elevador, diagnosticou que aquele era o problema, arrancou ele de lá com uns chutes e, bingo, iniciamos nossa descida com risos e agradecimentos da outra parte. "Essa já é a minha parte de serviços comunitários", emendou a mulher, contando outras histórias curtas, coroadas com um "Oh, oh, ho", dessa vez cantado à Beyoncé, com coreografia de pescoço e tudo o mais, sintetizando o quanto se requer astúcia para resolver a vida naquela parte da cidade.
Finalmente a terceira mulher estava dentro do trem, mas não nesse: o trem da madrugada seguinte, quando "viajei" para buscar o Rezende no aeroporto JFK. Preciso contar que as minhas noites antes de viagens e de compromissos madrugadeiros têm sido uma agonia. Depois que entrei na "idade média" dei pra desconfiar de despertador e fico acordando a cada 15 minutos pra conferir se não perdi a hora. Naquela madrugada não foi diferente e, como chegara na véspera, era a segunda noite no mesmo ritual medonho. De onde estava hospedado, teria de tomar apenas um trem, então, mesmo com medo das estações mal iluminadas e encardidas do metrô de New York, resolvi arriscar. O recepcionista do hotel e o moço do guichê tentaram me ensinaram a pegar o trem "A", mas eu sou péssimo de gravar coisas em séries abstratas como ruas numeradas e trens de alfabeto. Em três minutos passei a esperar o trem "B" - que não viria, claro.
Veio o "A" e com ele a maior de todas as surpresas. Após o embarque, uma voz ecoa na plataforma vazia: "Sir?". Era comigo. De uma janela, uma mulher pergunta que trem estou esperando e para onde eu iria. "Quem disse ao senhor que o "B" vai ao JFK?". Acusei injustamente o moço do guichê, afinal ele não estava por perto e era vergonha demais assumi que troquei as letras. Depois de sentar no trem e começar a viagem, a mulher abre a porta de uma cabine e vem conversar comigo: era a maquinista!
"Gran Central" é um poema de Billy Colins, registrado no meu bloco de notas de um painel do mesmo trem e da mesma viagem da última história desta postagem
The city orbits around 8 million
centers of the Universe

and turns around the golden clock
at the still point of this place

Lift your ayes from the moving hive
and you will see tine circling

under a vault of stars and know
just when and where you are.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Feliz ano novo!

Caro/a leitor/a regular deste blog, grupo seletíssimo de mais ou menos quatro pessoas (todas parentas minhas, claro), antes de mais nada, desculpa pela "banguela" de texto do mês de janeiro. O fato é que fiquei resistindo de falar de temperatura, mas não tinha praticamente mais nenhum tópico mais “quente” em Winnipeg... Para ter ideia, no primeiro dia de fevereiro, às 9 da manhã, a sensação térmica era de -45ºC e, por artes do diabo, eu tive de andar meus cinco minutos pelas ruas da cidade, porque tinha uma palestra sobre a obra de "Santo Agostinho". Sendo organizada pelo departamento que me acolhe, eu não tinha como perder, mesmo sabendo que dos -40 para baixo, em três minutos o nariz da gente fica dormente como a bochecha de quem saiu do dentista... Que ódio que eu fiquei daquele santo-filósofo-doutor-da-igreja e muito do misógeno. E atenção mamãe! Preciso contar pra você a ideia dele a respeito da finalidade para a qual Deus teria criado a mulher. Já vou avisando que a senhora vai ficar meio aborrecida...
Escultura pré-colombiana (Museum of Natural History, NY)
Outro assunto possível seria a minha produção acadêmica mas, passada a lua-de-mel da conclusão do curso de inglês, e não tendo mais como evitar o segundo capítulo da tese, o tempo ficou definitivamente nublado e eu aprendi de uma vez por todas quais as situações em que a palavra "miserable" é apropriada para descrever como a pessoa tem se sentido... Então chegou fevereiro e, com ele, não apenas o carnaval, mas algo ainda melhor: minha semaninha anual de férias com o Rezende. Ano passado demos uma geral numa pequena parte dos museus, cinemas e livrarias de São Paulo. Dessa vez nos encontramos em New York e mais da metade das "atrações" foi apenas estarmos juntos depois do primeiro e mais longo intervalo de quatro meses nos últimos 20 anos. Ainda vou contar umas coisinhas dessa viagem pra você!