terça-feira, 23 de outubro de 2012

Confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmã/os...


Sou um carola: pronto. Contei. Basta o sapato apertar um pouquinho, minha piedade vem à galope, mais ou menos do jeito que, no auge da minha guerra de independência adolescente, uma lâmpada da cozinha explodiu bem quando eu passava debaixo dela e, sem qualquer controle, soltei um berro de bezerro apavorado: “Mamãe”. Ainda bem que não tinha ninguém em casa pra testemunhar o vexame de, na hora “h”, pedir colo justo da minha maior inimiga da época: dona Maria Auxiliadora. Segredo guardado por mais ou menos 30 anos, claro...
Mais ou menos assim, estou eu, agora, nesse tempo de completa desinstalação, afrouxando as rédeas da laicidade cética e com vontade de, toda manhã de domingo, correr para o colo da mater eclesiae. Primeiro foi aquele episódio do sino na hora de ir ao mercado, que eu já contei... Duas semanas depois, não foi sino nem nada: quis ampliar minha espécie de turismo evangélico, participando do culto da Igreja Anglicana de São Mateus, que fica nos fundos do prédio onde moro. Chegando lá, tive de eu mesmo abrir uma porta monumental, sempre estranhando que as igrejas de cá não tenham as portas abertas (quem sabe por razões climáticas...), subi uma escadaria carcomida e dei de cara com uma mulher de meia idade, óculos de aros pretos e largos, com voz de quem tem faringite ou se comunica em permanente falsete: era a Reverenda Dr.ª Cathy Campbel, viria a saber depois, que me olhou tão fundo nos olhos e me acolheu tão afetuosamente, que as minhas intenções turísticas começaram a ruir.
Daí pra frente veio o culto, uma casula ornada com patchwork, alguns cantos de Taizé e uma liturgia que chegou a ficar estranha de tanto que me era familiar, com alguns deslocamentos, que acredito serem aprovados até pela Sagrada Congregação da Rede Celebra, como, por exemplo, o cumprimento da paz trazido já para o começo do culto e a partilha eucarística de vinho de verdade e pão caseiro, graúdo, reconhecido como tal inclusive pela aparência, ambos compartilhados entre todos os mais ou menos 40 que éramos no primeiro e no domingo passado.

Sim, não segurei a onda: domingo passado fui parar na São Mateus, às 11 horas, como sempre, para escutar mais uma vez, o pedido de desculpas da pastora pela indisponibilidade de microfone e a renovação da promessa de que na quinzena de novembro os cultos voltam para o outro espaço que, se entendi bem, fica no subsolo de uma igreja grande e em reforma, aparentemente sem dinheiro suficiente para tal. Dinheiro, aliás, tem a ver com o segundo motivo da minha fisgada: toda a homilia do primeiro culto foi de mobilização da comunidade para aderir à campanha contra a fome no mundo, com participação de 32 denominações.
Nesse domingo agora, ao invés da pastora, a homilia foi compartilhada pelas três mulheres e um homem, que representaram a comunidade no sínodo episcopal, onde, entre outros temas, foi discutido o desafio do relacionamento com os povos originários e a acolhida de casais homossexuais, aprovada, segundo relato de uma pesquisa, por 78% dos anglicanos destas paragens.

Quer dizer, uma pequena comunidade, que transpira espiritualidade e acolhida, sensível ao sofrimento dos pobres e de outras minorias em direitos, promotora de participação, treinada em uma ritualidade mais para monástica e instalada nas vizinhanças da minha solidão... corro sério risco, de domingo que vem, tomar daqueles mesmos vinho e pão.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

E assim foi o primeiro mês

Há exatos 30 dias estou em processo de instalação em Winnipeg. Nas primeiras semanas as malas pareciam recém-chegadas ou prontas para zarpar e até hoje ainda não montei o painel com as fotos que trouxe de casa. Faz parte do meu ritual de tomada de posse do espaço decidir lentamente que lugar é mais adequado para cada coisa, de modo que, quando um destino seja decretado, em tese, eu não tenha qualquer dúvida sobre o endereço do objeto procurado. No mundo real, isso quase nunca dá certo, claro. Das cinco gavetas da cômoda, por exemplo, a superior e a inferior foram as primeiras a serem ocupadas (não me pergunte por que nessa ordem...), a de cima com tudo que é roupa de baixo, e a de baixo com tudo que é roupa que esperava a hora de conhecer a lavanderia. As do meio, aos poucos foram colonizadas, com o liturgia que essa ocupação requer.

Emissão de carteira de estudante, abertura de conta de banco, inscrição no sistema público de saúde, coratação de internet, aquisição de panelas e víveres ocuparam todo tempo livre das primeiras semanas, incluída aí a maratona para descoberta do caixa eletrônico que converte os dólares americanos em dólares canadenses - única opção facultada pelo meu banco no Brasil em cima da hora do embarque. Na segunda quinzena, já medianamente acomodado, me dei ao luxo de voltar ao caixa eletrônico sem conferir a senha previamente. Não deu outra: pus quatro ao invés de seis dígitos, bloqueei o cartão e, graças a isso, passei o primeiro grande apuro canadense: uma semana de muitos contatos bancários com o Brasil, sem nenhuma cédula na carteira e sem coragem de contar as moedas que restavam na niqueira. Para completar o pacote, justo nestes dias a temperatura despencou e o clima louco de Manitoba que arrastou do paraíso de 20ºC para a neve que eu desconhecia e que não tinha a menor graça sem vintém para comprar luvas e tocas insulares... "Além de queda, coice" - como diz a filosofia rural de tia Senhora. A operação de desbloqueio do cartão continua em andamento, mas eu já estou devidamente agasalhado, graças a operações financeiras improvisadas a exorbitantes tarifas. Agora é ficar esperto com o maldito zilhão de senhas e viver bem e intensamente os outros 11 meses que "faltam" ou que "restam" - como preferir...
 
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Manuelices de Barros e de Neves

A neve é uma chuva que cai em câmera lenta,
com pingos em queda vacilante e espiralada,
que põe temor na volta da escola para casa,
mete as mãos de todo mundo no bolso,
faz das caras brancas um tomate
e do nariz de todos, um metal.

Põe chantilly na face exposta dos bancos,
espreme a multidão nas paredes e
enche as ruas atraversais
de invisíveis moleques traquinos,
atirando na cara dos transeuntes
o gelo mastigado pelo raspa-raspa.

Encanta da janela pra dentro,
borda com swarovskys o capus da gente,
mas põe saco de pão entre as duas meias do noviço
reticente pela impermeabilidade de suas botas,
graças a conselhos de uma alma tropical generosa
ou à pandeguice de uma blogueira desocupada.

Ao fim e ao cabo do primeiro dia,
conforto de chegar em casa,
vaidadezinha de estar inteiro,
novo encantamento com os telhados algodãolhados,
temor quanto às previsões da manhã seguinte
e uma ilusão de que tudo poderá dar certo.