sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

"Yo tengo más que el leopardo..."

Se me lembro bem, a queixa dela é não ter direito a um aniversário "normal", com bolo, refrigerantes, docinhos, montes de presentes (a maioria chatos) e, principalmente, não ter aquele dia em que ocupamos, legitimamente, o posto de centro das atenções... Nascendo num dias desses, claro, há sempre uns festões, presépios, "ho-ho-ho-hos" e outros milhões de coisinhas em torno de "outro" aniversariante que sempre ameaçam o brilho e o sabor do dia especial que todo aniversariante deveria ter direito a ter. Por ela, proibiam-se nascimentos em dia de festas badaladas, especialmente no Natal.

Para quebrar as tradições de natais e aniversários estereotipados, segui a pista dada pela própria aniversriante e investi esta manhã buscando uma versão suficientemente bonita dos versos de José Marti com que ela nos recordou do seu aniversário deste ano. Célia Cruz? Raízes de América? The Sandpipers? Buena Vista Social Club? Nana Mouscouri e Joe Dassin? Não consegui escolher a mais vibrante, mais bonita, mais tocante... Seria um presente para ela, terminou sendo um presente para mim. Recomendo, de qualquer forma, que curta todas e muitas outras versões disponíveis, com as quais celebro, hoje, a tua vida, CIDA ALVES!


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Lavras e louvores

Texto: Walderes Brito
Fotografias: Wolney Fernandes de Oliveira



A visita a um museu pode ser uma profunda experiência mística – sei disso, visceralmente, desde o mês passado, quando o Museu Antropológico da UFG me abriu as portas (e muitas portas e janelas em mim) para “Lavras e Louvores”, exposição de longa duração, com curadoria das antropólogas Selma Sena e Nei Clara de Lima, professoras da UFG. Recomendo, vivamente, que não entrem na sala antes de ler o conceito da exposição que não apenas nos prepara para a experiência quanto, em sintéticos dois parágrafos expostas à esquerda da entrada, põe em frangalhos nosso linear-progressivo-rígido e equivocado modo de enxergar as temporalidades e de convencionar fronteiras de todas as naturezas. O choque do texto tem o condão de fazer ver, em nós e no mundo, como e quanto o presente, o passado e o devir mesclam-se numa complexa e envolvente tecitura.

Quando ultrapassar o batente, você terá os pés postos na cintura de um “oito” ou de um sinal matemático de “infinito”, e será silenciosamente convidado a caminhar à direita ou à esquerda, conforme mandem as ancestralidades que habitam o que corpo que você é. As minhas me arrastaram ao caminho das lavras, num movimento que me conduziu da penumbra para a iluminação e da audição de uma espécie de sofejo para uma música marcadamente indígena – ambas tornadas plenas quando se chega à cabeça ou aos pés do “oito” ou do “infinito” – lugar ladeado por um painel de cobertas tecidas, quem sabe, pela mãe ou pela avó de qualquer de nós, porque dificilmente não há em nosso repertório a memória de ao menos um sono acalentado sob uma daquelas sofisticadas tramas e padrões.



O caminho de volta, da luz e da música outra vez para a penumbra e o silêncio, surpreende pela quantidade, pela diversidade, pela originalidade e pela delicadeza com que diferentes povos nativos na região documentam a fauna local, em aves, répteis, mamíferos e peixes de palha, barro e madeira. Um espanto pensar que temos (ou tínhamos) tanta riqueza e que elas foram tão minuciosa e artisticamente catalogadas através dos tempos...

Outra vez na cintura do “oito”, dê um passo à frente e se detenha para contemplar o portal em arco de flores de papel suspensas sobre a sua cabeça, num tempo e num espaço nos quais, seguramente, habitamos: hora dos louvores! Como estava sozinho, não tive vergonha de evoluir dançando: é que não consegui me mover neste quadrante a não ser na cadência das caixas e do canto dos foliões que crescia ao fundo.

E o fundo não era o fim. Depois dele, uma passagem de finas cortinas coloridas, transparentes, sobrepostas impediam a visão ao mesmo tempo em que insinuavam o além. Resolvi me arriscar por entre os tules e esbarrei em altares de todas as divindades. Na lateral à esquerda, o único lugar a plena luz, me arrastou para o insigt definitivo: um cubículo com espelhos, recobertos por fotos vazadas de pessoas, dispostas numa espécie de jogo da velha, completado apenas com a inserção da nossa própria cara refletida, compondo o quadro da diversidade das gentes do sertão. Caminhei com esse “sentido” mais uma vez através da sacralidade, despedi-me da folia, não sem antes admirar as rendas e os dourados de Oxun das águas doces de outras e também destas paragens. Uma vez mais na cintura do “infinito” tanto fazia refazer o caminho das “Lavras e Louvores” quanto transbordar para a vida: nada mais podia ser como antes.



Serviço:
Museu Antropológico da UFG
Exposição Lavras e Louvores
Praça Universitária
Terça a sexta, 9 às 17h00

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sobre negros e viados

Gosto de televisão e gosto de dirigir ouvindo qualquer coisa da CBN. Ontem à noite, me emocionei, no Cladestinos, com o Quixote de Pedro Gracindo e me indignei com a verdade desnuda na conversa de 60 segundos travada por Júnior e Eduardo, dois atores negros, sobre o racismo no Brasil, inclusive no campo da arte. Hoje depois do almoço, foi a vez que me indignar com o cinismo homofóbico reiterado de um deputado do qual não escrevo nem o nome (para não gerar pontos para o infeliz nas buscas do Google), mas me identifico plenamente com a justificada indignação da comentarista Rosean Kennedy sobre o episódio. Como respeitar um parlamento que põe um sujeito dessa espécie na Comissão de Direitos Humanos de Minorias?

Aqui vai a "crônica do planalto" e abaixo o trechinho de Clandestinos.



quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Agendado com antecedência


Não ficou definido o dia, mas está escrito no meu cartão de vacinas (sim, eu tenho um!) que devo voltar ao posto de saúde, em novembro de 2020, para mais uma dose contra a febre amarela. O compromisso foi marcado ontem, depois de 17 páginas de espera (porque ultimamente meu tempo em filas se mede por páginas lidas), junto com uma dúzia de bebês. Os mais velhos éramos o Pedro e eu: ele com 4 e eu com 42... Antes de mim, foram a Sarah e o Miguel, ambos na fase em que se acorda às 11 da manhã, apenas quando agulhas ferem o bumbum ou algo com semelhante gravidade. Nem barulho, nem calor, nada atrapalha a modorna... Júlia e Maria Eduarda, que chegaram depois de mim, já tinham comportamento de gente grande. A primeira na fase hippie, rindo para todo mundo, mesmo para os de cara feia, com quem eu brinquei de esconde-esconde atrás de "A virada cultural", de Fredric Jameson. A segunda, mais gente grande ainda, não aguentava nem ficar no corredor: eram os pais irem se aproximando, ela abria o berreiro e apontava para a porta de saída aos prantos e a plenos pulmões: sabia que aquele lugar não reservava coisa que preste; melhor pular fora.

"Pais", aliás, é força ondorcêntrica do hábito, porque quem fica nos corredores dos postos de saúde, quem segura as pernas dos filhos para tomar vacina são as "mães". Ontem, por exemplo, os pais eram tantos quantos as avós: três, no máximo, e nenhum estava só e tampouco aceitou entrar na sala das agulhadas: "Com tanto conhecimento que existe", reclamou a mãe do Miguel, "e ainda não inventaram nada para evitar essa tortura com os pobrezinhos: devia ter um jeito de imunizá-los ainda na barriga da mãe".

Nunca tinha pensado nisso, certamente porque nunca precisei segurar pernas de bebês em vacinação, mas concordei na hora. Na hora e logo depois também, quando foi a minha vez de tomar uma no braço direito e outra no esquerdo, após de uma conferência entre as enfermeiras, que sentenciaram a isenção do meu traseiro para a empreitada. Sem falar em que novembro de 2020, além de ter dia de finados e proclamação da república em pleno final de semana, ainda terei de repetir a dose... Ninguém merece!

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Mulheres sobre Mulheres

Um dos meus argumentos sobre o valor de uma espécie de "educação para a recepção crítica aos media" tem a ver, por um lado, com o elevado grau de exposição a que todos nós estamos expostos e, por outro lado, pela absoluta necessidade de desenvolver critérios capazes de distinguir, minimamente, o joio do trigo, cada vez mais indecifráveis sob capas e capas de maquiagem, iluminação, edição e o diabo a quatro. Um bom treino, nesse percurso, é assistir o episódio abaixo do "Entre Aspas", com três mulheres chamosas e inteligentíssimas debatendo sobre uma quarta mulher, Dilma Rousseff na presidência, e depois ler (só depois, se conseguir não morrer de curiosidade) um texto de uma quinta mulher ingualmente charmosa e inteligente, a respeito de um, digamos, deslize revelador das questões de gênero que precedem, perpassam e transcendem àquele debate. Aviso aos navagantes que o programa é mega interessante e envolvente, o que torna a tarefa de detectar o tal "deslize" umé coisa para "iniciados", como um sofisticado jogo de 7 erros...

Sem mais delongas, senhoras e senhores, primeiro Mônica Waldvogel, Marta Suplicy e Fátima Pacheco Jordão e, em seguida, Eliane Gonçalves!



Agora, sim, leia o texto a Eliane Gonçalves.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Fui assinante de Veja!

Pronto: confessei! e pouca coisa "vexamenta" sobra para dizer depois disso. A última gota, nessa relação insólita, foi a capa aí ao lado, inocentemente publicada na semana que antecedeu o segundo turno de 2006. Poucas vezes tive a minha inteligência tão afrontada. Liguei na hora e mandei cancelar minha assinatura. Ainda hoje fico furioso quando recebo uma oferta de renovação de assinatura... Uma eleição depois, a Veja quase se superou, com uma matéria, com a isenção de sempre, que faz o paralelo entre Lula e Fidel, com base em um conjunto de fotos.

Não deixe de conferir a leitura da Vanessa Lampert sobre a aberração de 2010.

Viva a inteligência e vida longa às comunicação em rede!

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Pensando com Luiz Mello

Além de um confessado receio dos resultados das eleições presidenciais de 2010, tenho apreciado a granel os debates sobre aborto, mulheres, viados e outros temas que, se para mais não servem, ao menos escancaram o mais tosco do que, como povo, ainda somos e que, em tempos de paz, costumamos dissimular. Gosto muito de toda oportunidade de argumentação e acho que a Internet favoreceu, nesse contexto, a expressão de pensamentos que não atendem os requisitos da noticiabilidade e jamais são disponíveis nos media hegenônicos e essencialmente anticomunicativos por sua incontornável centralidade e unidirecionalidade num tempo em que a troca (mesmo que de farpas) em redes sinápticas é tecnologicamente viável. Não sei expressar uma opinião madura o suficiente sobre a maioria dos temas: mas sei "gostar" e gosto muito de alguns textos que passarei a compartilhar a partir de hoje. Começando pelo que segue, do Luiz Mello.



Queremos casar. Fazemos abortos. Mudamos de sexo.
Amamos viados. Mulheres são nosso ideal.
E, mais que tudo, existimos e resistimos.

Quando adolescente, no final dos anos 70, uma das máximas da resistência ideológica de minha geração era um trecho de poema atribuído ao russo Maiakovski, mas que é de Eduardo Alves da Costa. Intitulado No caminho com Maiakoviski, em um trecho diz assim: “Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem; / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada”. Creio que é hora de dizermos:

SOMOS LÉSBICAS, TRAVESTIS, GAYS E TRANSEXUAIS. SOMOS MULHERES E FAZEMOS ABORTOS. REIVINDICAMOS ACESSO IGUALITÁRIO AO CASAMENTO, À UNIÃO ESTÁVEL, AO DIVÓRCIO, À INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL, À BARRIGA DE ALUGUEL, À ADOÇÃO. QUEREMOS TER DOIS PAIS HOMENS OU DUAS MÃES MULHERES. SOMOS CATÓLICOS-AGNÓSTICOS-UMBANDISTAS-EVANGÉLICOS-ATEUS E ESTAMOS EM TODOS OS LUGARES.

Não há nenhuma necessidade real de pertencermos a qualquer desses grupos ou de desejarmos usufruir qualquer dos direitos que lhes são negados. O fundamental é ter a clareza de que não se trata apenas de uma ameaça à cidadania e mesmo à sobrevivência física de pessoas homossexuais, travestis, transexuais e de mulheres heterossexuais, embora a garantia de seus direitos humanos seja um imperativo absoluto. Num nível além das aparências mesquinhas, o que está em jogo é algo precioso para todas as pessoas, por serem princípios fundamentais da vida democrática: a laicidade do Estado, a liberdade e autonomia dos indivíduos, a garantia da igualdade na esfera pública.

Agora são as mulheres e os segmentos LGBT os alvos do desejo de morte física e simbólica dos que se auto-intitulam representantes da única concepção aceitável de vida e de humanidade. Amanhã continuarão a ser eles, concretamente expulsos de seus trabalhos e perseguidos rua afora, por termos feito abortos ou por amarmos um igual... Depois de amanhã, ... poderá ser qualquer um que se torne o o(a)bjeto da ira dos intolerantes seguidores de um deus inventado para justificar uma lógica perversa de manutenção de privilégios, para os de sempre: machos-dominantes-heterossexuais e os que com eles se macomunam. Basta olhar quem são os donos do poder e quem ocupa majoritariamente os espaços de decisão política de nossa sociedade – nos poderes legislativo, judiciário e executivo, nas igrejas, no tráfico de drogas, na estrutura policial, etc.

Não sei se é lenda, mas há alguns anos ouvi uma história incrível: quando os nazistas invadiram a Dinamarca, não conseguiram prender grande número de gays e lésbicas, diferentemente do que ocorreu em muitos outros países durante a segunda guerra mundial. Antes que as prisões se tornassem um fato irremediável, centenas de milhares de dinamarqueses começaram a usar voluntariamente em suas roupas o símbolo do triângulo rosa invertido, empregado por nazistas para identificar homossexuais nos campos de concentração. A solidariedade foi a fonte da resistência. Não é à toda que muitos anos depois a Dinamarca tornou-se o berço dos direitos conjugais de lésbicas e gays na contemporaneidade.

Apenas por muito pouco estamos hoje distantes das mãos dos que se sentem no direito de dizer quem deve e quem não deve viver – e como viver -, seja por razões de Estado, seja por razões religiosas. Isso é inaceitável. Quando um grupo de pessoas se vê na iminência de perder direitos de cidadania e humanos por terem se tornado o bode expiatório da vez, toda a estrutura democrática da convivência humana está ameaçada. Num momento em que o machismo homofóbico é nitroglicerina pura e o combustível ideológico das igrejas nas disputas de poder relacionadas a um projeto de sociedade que nega direitos sexuais e reprodutivos a grupos específicos, um caminho de resistência talvez seja dizermos que somos tod@s ess@ outr@ que querem calar, castrar, excluir e aniquilar. E é urgente fazermos isso agora, desobedientemente, sem medo de assumirmos politicamente a rebeldia do oprimido que se revolta e não aceita as bases da vida desumanizada que lhe está sendo imposta. Se nos calarmos neste momento, talvez amanhã não possamos dizer mais nada.

Luiz Mello
Pesquisador do Ser-Tão e
Professor da Universidade Federal de Goiás

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Da sacola pra dentro

Há tempos não fazia cálculo que quanto pode render a leitura de um livro, para aconomizar a curtição como, na infância, lambia em slow motion pirulito zorro, delícia de abacaxi feita por "Corrinho" (irmã temporã do meu pai) e bombocado da Padaria Sertaneja, localizada na Praça Rádio Clube, de São Bento do Una... Para entender meu deleite, vai uma lambidinha:

"Você nunca sabe o dia em que vai encontrar o amor da sua vida. Por isso, nenhum aviso, nenhuma premonição ou intuição me preparou para aquela noite fria de maio. Como já faz tempo que isso aconteceu, posso falar agora, em detalhes, sobre o momento que antecede o encontro com o amor de sua vida. Sobre os segundos que separam sua existência até ali do resto dela. Trata-se, entendam, de um tempo muito peculiar, medido em frações de segundos. Trata-se de uma fenda temporal, mais exatamente. Mas, se você ficar atento, conseguirá, depois que tudo passar, lembrar de cada um dos detalhes, como eu faço agora."

(LACOMBE, Milly. O dia em que você encontra o amor da sua vida. In: tudoésóisso: amor, conquistas e outros prazeres fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2010)

terça-feira, 12 de outubro de 2010

domingo, 22 de agosto de 2010

A freira e o namorado

Quase duas décadas depois dos primeiros contatos, quando era professor na então Faculdade de Ciências e Letras de Iporá (hoje UEG), as cartas de sóror Mariana Alcoforado entraram aqui em casa, com a sedução de sempre. Trata-se de cinco cartas, escritas em meados do século XVII, supostamente de uma freira portuguesa para um militar francês que fora seu amante quando em campanha e que a teria abandonado. Nos três séculos que separam a primeira publicação e os dias de hoje tudo tem sido posto em dúvida, especialmente a existência da freira e do cavaleiro e a autenticidade das cartas, com apaixonados ataques e defesas. Sobre o que não pode haver dúvida é sobre a qualidade literária do texto, tido por muitos como o mais significativo das letras lusitanas desde Camões. Quer ler um trechinho para sentir o sabor?

"[...] Consumiste-me com as tuas assíduas perseveranças; ...inflamaste-me com os teus transportes, encantaste-me com as tuas finezas; ...asseguraste-me com os teus juramentos; ...a minha inclinação violenta seduziu-me, e as consequências destes começos, tão agradáveis, e tão venturosos, não são mais do que lágrimas, gemidos, e uma funesta morte, sem que possa achar-lhe algum remédio!"

Imagem captada de: http://www.museuregionaldebeja.net/sorormarianaalcoforado.htm

domingo, 15 de agosto de 2010

A cor da miséria



Recomendo, entaticamente, a leitura do especial do Jornal do Comercio, de Pernambuco, a respeito do recorte étnico-racial da miséria do Brasil, no contexto de comemoração do centenário de morte do abolicionista Joaquim Nabuco. Com linguagem jornalística envolvente, assentada em casos que ilustram com precisão as camadas de reflexão desenvolvidas, Fabiana Moraes não descuida de uma pesquisa cuidadosa e rica de diversas fontes científicas que desmascaram o sempre vacilante (porém vivo!) mito da democracia racial brasileira, numa matéria valorizada pelo tratamento visual dado ao caderno como um todo.

Para ler o especial na íntegra, clique aqui!

domingo, 8 de agosto de 2010

Mané de Jorge

Em janeiro meu pai completou 70 anos e eu não pude participar da festa. Hoje é dia dos pais e eu estou a 2 mil quilômetro... Não custa correr o risco de enviar, outra vez, a mesma "carta" ridícula...

"Todas as cartas de amor são

ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

como as outras,

ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

têm de ser

ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

sem dar por isso

cartas de amor

ridículas.

Afinal,

só as criaturas que nunca escreveram

cartas de amor,

é que são

ridículas."

(Trecho do poema "Todas as cartas de amor são",

de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa)

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

22. CHAGA - "Buraco do Tatu"

Esse era o nome do lugar mais misterioso e proscrito da, agora, sesquicentenária São Bento do Una, minha cidade de origem. O motivo era óbvio: Buraco do Tatu era o lugar dos cabarés para onde os homens da cidade escapuliam no breu da noite e onde as quengas se escondiam durante o dia, em casebres de taipa sem reboco, no caminho do esgoto que escorria de toda a Avenida Manoel Cândido e da Rua Cira Mota, vindos tanto do nascer quanto do pôr-do-sol. Quem estudava no Colégio Estadual precisava dar uma volta quase lá pela Cilpe ou pela rua do Armazém dos Cadetes só para não cruzar nenhum dos proibidíssimos becos do Buraco do Tatu. Menina, então, dependendo da piedade cristã da família, não podia nem pronunciar o nome... Meninos ficavam na dúvida, alguns ansiosos outros aflitos, se o pai um dia ia arrastá-lo pra lá, como quem atravessa o portal de acesso ao universo dos machos. Isso durou mais de dois terços dos 150 anos de São Bento, até que um prefeito messiânico com nome composto resolveu “cristianizar” a cidade, tirando as putas para um canto afastado e transformando o lendário Buraco do Tatu numa insossa Rua da Alegria, que tá lá até hoje. Quem sabe, porém, que por baixo dessa Alegria jaze um Buraco do Tatu ainda passa cabreiro por aquelas imediações.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

"variações" quali-quanti


Já passou uma semana da entrega do primeiro exercício de Métodos e Técnicas de Pesquisa, a respeito de abordagens quantitativas e eu ainda me sinto algo assim entre bêbado e mareado. Todo o negócio começa pela compreensão de que mesmo um objeto qualitativo pode ser abordado quantitativamente, desde que a observação seja feita não do objeto propriamente, mas das variáveis que o compõe. No caso do nosso exercício, a pesquisa já havia sido feita, as variáveis estavam determinadas, os dados estavam tabulados no SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) e guardados no CIS (Consórcio de Informações Sociais). Nossa tarefa era simplesmente cruzar todos os dados, identificar a significância estatística e a força de associação da intersecção de variáveis da tabela de contingências, com base na leitura do R de Pierson, do SIGMA, do LABDA ou do GAMA, dependendo do caso das variáveis serem discretas ou contínuas, nominais ou ordinais, entendeu?

É! Acho que eu também não... E o pior é que ainda fico com uma vontadezinha-quase-comichão de me meter nessa roubada de decifrar os enigmas das ferramentas quantitativas em aproximações de problemas do campo das Ciências Sociais.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Desimportantes exuberâncias


Uma mangueira da minha rua,
nem sei se era tempo,
nem sei se carecia tanto,
endoideceu em flor,
bem no meio do outono,
como quem diz que sempre
é hora do que "der ou puder ou quiser*"
*Parte de verso da canção "O que é o que é" do Gonzaguinha

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Desfiando e tecendo



A preparação começou ontem: de manhã cedo liguei para a Sandra Face, uma amiga querida e agora metida a padeira, e encomendei um pão. Encarei o caos da Feira Hippie e, milagrosamente, encontrei Dona Candinha, uma doçura de gente que vende na feira os panos de pratos e adereços de cozinha que ela mesma concebe e cose. Escolhi um "bisaco" de saco de açúcar alvejado, desses que estão doidos pra serem bordados e, no fim da tarde, fomos a Aparecida de Goiânia buscar o pão... Rezende encontrou uma sacola de papel pardo, uma fita de cetim azul e escreveu, com letra de quem teve caderno de caligrafia, um recado bem mimoso em um cartão de craft nos nomes de nós quatro: Sandra, Candinha, ele e eu...

Da minha parte, queira oferecer mais o cheiro do que o próprio pão. E ele estava perfeito! O que eu não contava era que o vagabundo do porteiro não ia avisar a Rosi nem ao Israel... Resultado: o pão ficou na portaria até hoje de tarde, quando a defesa já tinha acontecido.

De alimento de preparação, virou comida de festa, porque a defesa foi um momento sublime, bruto e delicado. Com a Rosi hoje e com o Wolney um ano atrás, aprendi que é possível e desejável que se faça ciência em primeira pessoa, tornando público o lugar de onde falamos que, invariavelmente, é o nosso próprio corpo, em permanente luta e comunhão com os demais corpos que a vida nos faculta relar.
Enquanto espera um bucadinho para ter o prazer de ver as desfiandices e bordâncias da Rosi Martins, que estão em dores de parto, recomendo que dê uma passadinha de olho nas "Histórias com Dona Prizulina" do Wolney Fernandes (primeira dissertação da FAV/2009). De encher os olhos, afobar a respiração e abrir as porteiras de anjos e diabos que habitam em Santa Dica, Tereza Bicuda, neles, nelas e em nós.

sábado, 1 de maio de 2010

21. INVISÍVEL - E bem real

Pulga atrás da orelha; cheiro de gaveta de avó; apenas uma, entre dezenas de surras de infância remota; a certeza de que, cedo ou tarde, o computador vai comer um trabalho que você suou para fazer, acompanhada da sensação de que não fará outro tão bom quanto o que perdeu. Dúvida sobre as escolhas feitas; dúvidas sobre o que fazer agora; dúvidas sobre amanhã; coceira debaixo da pele; ferozes debates fantasiados em resposta a desaforos que ouviu e que não conseguiu responder na lata, fervidos no ódio mortal e justificado da leseira do próprio cérebro. Água já entornada em garganta seca; o arredondado do céu; cenas de uma história, até que a narrativa seja aprisionada em uma imagem fixa ou móvel e bem descritiva - nanismo das visualidades imaginárias.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Paixão de vó Dorica



O ponto alto da Semana Santa da minha infância era a sexta-feira da paixão. A abstinência de carnes nas seis sextas da quaresma preambulavam a sexta-feira maior, quando os homens nem bebiam água na metade do dia e todo mundo tinha de jejuar. Criança não era obrigada, mas o fazia como quem pede licença para entrar na vida adulta. Jejum, na verdade, é modo de falar, porque o dia era de banquete, e dos fartos! O negócio consistia em acordar cedo, não tomar café da manhã e esperar que chegasse meio-dia em ponto para poder sentar à mesa que, mesmo de 12 lugares, sem contar os tamboretes improvisados, ainda era insuficiente para acomodar os herdeiros. Eu era um dos que sempre sobrava para a mesa da outra sala: suprema humilhação... A compensação vinha em forma de bacalhau e peixes preparados de trocentos jeitos e mais uma toneladas de pratos que só davam o ar da graça naquele dia, sem contar que na sobremesa tinha bolo de mandioca já fatiado e uma “poncheira” de umbuzada daquelas bem doces e grossas. A essa altura o jejum já tinha ido pro beleléu, mas sem culpa nenhuma porque a quantidade de calorias ainda não figurava no cânone dos 8 pecados capitais. Até hoje não entendi porque só nessa época o livro de vô Jorge, com figuras de dilúvios e de santas martirizadas, saia do guarda-roupa e vinha à público... E alguém sabe explicar por que, com tanto feijão e côco o ano inteiro, só nessa época feijão de côco frequentava a mesa dos “Cândios”? E que idéia é essa de servir “imbuzada” de sobremesa?


Depois disso, vinha o sábado de aleluia com o “Judas” nas portas dos vizinhos de Linduarte e tia Zália, na Una, e os banhos matinais (por que todas as águas do sábado de aleluia são abençoadas) e, para completar, o domingo de páscoa, que é o maior para a maioria, e pra gente não tinha a menor graça.

terça-feira, 23 de março de 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

18. CANTO - Secretamente compartilhado

Embaixo da cama: canto eleito para guardá-la por ser o mais privado possível, ali pelos oito ou nove anos. Ela veio de São Paulo, cheia de roupas usadas, mandadas pelos parentes de lá, no retorno de uma viagem de mamãe que, até hoje, não consigo dizer porque teria sido feita exatamente naquela época. Nem antes nem depois. Após o rateio dos regalos de segunda, festejados como se de primeiríssima fossem, a mala verde foi o que me coube, por recíproca eleição, começando ali uma longa relação de mistérios e cumplicidades.

Desde então, arrastei essa mala para debaixo da minha cama por três ou quatro casas para as quais nos mudamos, através da minha infância-puberdade-adolescência e juventude... Nela cabia, em segredo e síntese, tudo que habitava em mim: coleção de tampas de margarida de super heróis; álbuns de figurinhas invariavelmente inconclusos; pacotes de gibis comprados, nos sábados que eu podia ir do sítio à feira, na banca do seu Genésio e da dona Marli, com predomínio da turma do Bolinha e da Luluzinha, com suas mães de peitos fartos e bundas murchas, vendas de limonada em caixote, com rã atirada dentro da jarra e brigas com a turma da zona norte... Também tinha coleção de meia dúzia de chaveiros e um inútil “compacto” de história infantil numa casa sem vitrola.

Entre outras relíquias, que eu julgava invioladas, embora a mala não tivesse chave, uma “milhaeira” de cerâmica em forma e cor de moranga, onde eu guardava minhas moedas e que, soube muito mais tarde, era o mesmo lugar de onde Vanuzia e Amanda, minha irmã e prima quase gêmeas, com uma faca de mesa e muita habilidade, tiravam toda tarde, no meu horário de aula, o soldo para financiar esbórnias de picolés e pipocas com textura de isopor, disponíveis na banca do seu Babá.

Esta, porém, já é outra história, ainda sem suficiente acerto de contas...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Cidadela

Um curta que deve ser visto pela animação, pela música, pela história e pelo mais de bom que se busque em arte cinematográfica.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Oran e Porto Príncipe


Foto: ONU/ Divulgação: uol

Ouço, vejo, penso e estremeço com as notícias do Haiti, sem consegui me desligar do enredo de “A Peste”, lido nos dois primeiros dias deste ano. A velocidade da leitura, nesse caso, se deveu menos a minha voracidade de leitor e mais à perícia de Michel Camus na condução da narrativa, produzindo em quem a lê a mesma tensão de quem está aprisionado num lugar açoitado pela “peste”.

Narrado em terceira pessoa, embora pudesse ter sido feita em primeira, como se revela no epílogo, “A Peste” tem a particularidade de ser um relato de homens, quiçá porque seja predominantemente de varões a autoria das bestialidades do nazismo sobre a França de outrora, de que o livro seria uma parábola, como bem poderia sê-lo da não menos cruel a calculada pauperização de muitos povos, de há muito e até à nossa geração, entre eles o Haiti.

O cenário é descrito como uma cidade comum que não passaria de uma “prefeitura francesa na costa argelina”, por onde as personagens evoluem da cínica indiferença à desesperada ação coletiva solidária, ao sabor das ondas da morte que engolfam a todos, começando pelos ratos e chegando aos notáveis, como políticos, juízes e clérigos.

Envolvente e irresistível, a peste verga a gente para o bem e para o mal. À medida que avança, dessacraliza ritos e brutaliza pessoas, enquanto a outras humaniza mais funda e definitivamente. Após sua sinistra jornada, a peste vai embora tão arbitrariamente quando chegou e deixa sobre Oran a dúvida, ameaça ou certeza com que Camus encerra a obra: “Um dia acordará os seus ratos e os mandará morrer numa cidade feliz”.
Oran? Haiti? Aqui?


quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

17. CÓSMICO - Avesso

Dado à luz na caatinga, acabei dado a penumbras e nevoeiros. Sol, pra mim, evoca a seca de “70” narrada com amarguras e a do início dos anos 80, vivida na plenitude da aridez, com água regrada até pra beber e cozinhar, que dirá pra tomar banho... Céu azul e horizonte aberto, quiçá por isso, ao invés de encantamento, me dão tremor e enfado. Gosto mesmo é de nuvens gordas e de céu pardo, desses que quase se toca com a mão e que logo se derrama em aguaceiro, ao som de trovões graves e agudos, acompanhados de coriscos incendiando o breu. Cerração não me deprime. Dá até conforto: nada de suor, nada de pele crestada, nada de luz furando a retina. Até o sol fica bom de ver quando há uma cortina de nuvens que o converte numa espécie de lua, dessas que gostam de se mostrar dengosas, hipnotizando gentes e bichos. Na cidade, só vejo edifício de longe. O sol causticante do Agreste me viciou em horizontalidades. Normalmente, ignoro o que habita acima da minha calvície. Estrelas cadentes, acho até bonitas, mas não tenho paciência de ficar esperando com a cara pra cima. Resultado: só vi uma e mesmo assim porque me mostraram, numa peripécia amorosa nos matos gerais... Por essas e outras, minhas preferidas são as viagens ao infinito pelo avesso: de multidões a grupos, pessoas, um, membros, células, núcleos, ocos sem fim nem fundo.