domingo, 30 de agosto de 2009

Á flor da pele



Não me sai da memória as imagens dos meninos albinos, fugindo do sol escancarado das ladeiras de Olinda, nem o texto primoroso de João Valadares - expressão das infinitas formas de contar uma história.


sexta-feira, 28 de agosto de 2009

8. DISTÂNCIA - "Longe é um lugar que não existe"*

Cheiros arrancam a gente pra lugares e tempos remotos, sem licença nem vagareza: é pá pum! Masturbações nos levam a corpos conhecidos ou que nunca o serão. Sabores também são excelentes veículos de teletransporte. Lembranças, nem se fala! Quando me contam que meteram o pé numa tábua de pregos ou a mão num caco de vidro, sinto um instantâneo e tenebroso gelo no saco. Se o relato for uma ficção, eu nem ligo: gelo igual. Tenho sempre um instante de nó na garganta nos episódios de Brothers and Sisters. Declarações de amor entre irmãos, pais e filhos me derretem até em propagandas do dia dos pais da Renner, sem nenhum efeito antídoto da minha empertigada consciência crítica sobre o proselitismo burguês do arcaico modelo cristão de família nuclear, patricarcal e androcêntrica.

Nem tempo, nem lugar, nem fato:
tudo aqui, em mim, agora!

*Título de um livro de Richard Bach

domingo, 23 de agosto de 2009

7. INVERNOS - De porcelana

No último ano década de 80,
já de meio dia para a tarde daquele ano,
deu-se o encontro primeiro.
Uma semana ao pé de uma serra gelada
de algum raro lugar vazio de São Paulo,
com dias intensos de discussão por qualquer coisa
e noites repletas de extravagâncias
que a pouca idade permite e, às vezes, impõe.

Quando já não havia tempo,
viram um ao outro
como até então não ocorrera
e, entre arrojo e rubor,
fitaram-se intensa,
segura,
aberta
e silenciosamente.

Na balbúrdia do Tietê,
antes de rumar a destinos
ignorados e sabidos ermos,
um abraço fez batidas descompassadas
sobrepujarem os agasalhos
inadequados para aquelas paragens
e insinuarem que, ali,
principiava uma viagem improvável
e, todavia, infinda.

6. LIMITE - Rumo à São Silvestre

Penso muito, nos últimos dias, sobre os 9 segundos e meio em que o jamaicano Usain Bolt percorre uma pista de 100 metros e nos 22 segundos que o festejado gigante tupiniquim, César Cielo, atravessa uma piscina de 50. Nenhum dos dois precisa ou pode respirar na travessia: só explodir, ganhar, rir, morder medalha e, agora, espremer os olhos pra ver se espirra uma lágrima.

Penso nesses caras especialmente nos finais de tarde, quando faço minhas corridas na praça universitária ou em algum parque da cidade. Vez por outra, porém, sou arrancado bruscamente das minhas meditações, por uma legião de malditos e furiosos velhinhos que me ultrapassam como um Schumacher a um Rubinho, eu correndo na última rotação, eles caminhando como quem está apenas no aquecimento.

Abstraio para que a humilhação não me tire definitivamente das pistas. Izidro, meu colega de trabalho e entusiasta das provas de rua a curta distância, me contou que o melhor desempenho em provas de resistência são de pessoas mais velhas: “Pode ver que os vencedores de maratonas nunca são jovens”, me consola. “Daqui a 30 anos acerto as contas com essa canalha”, remoo entre dentes, enquanto me arrasto pelas pistas da cidade por 3 infindáveis quilômetros em 50 e tantos minutos.

domingo, 2 de agosto de 2009

5. PROFUSÃO - De saberes


4. GOSTO - Meu gosto!

Gosto é um híbrido de cachorro acanhado e cavalo sem cabresto. Alguns abanam o rabo, com olhos melados, enquanto se enroscam em nossas pernas, sem chances de escapatória: hábitos, cheiros, sabores, costumes que, se a gente abandona no almoço, à noite parece que o dia foi inexplicavelmente esquisito. Há gostos, especialmente de comidas, que não suportam indagação: que gosto tem a peta, o sagu e o cuscuz? Pergunta ofensiva, independente do tom e da intencionalidade do intrometido.

Não adianta dizer para um goiano que peta tem sabor de isopor lambrecado em banha de porco; muito menos contar para um gaúcho que sagu é algo como bolinhas de cola caseira feita com fécula de mandioca, em cor e calda bordeau; perigoso mesmo é dizer para um nordestino que cuscuz tem cheiro ótimo e gosto de "palha seca"... O gosto dessas e de muitas outras comidinhas está no inacessível e incompartilhável da memória dos afetos e do bem-querer: gosto de casa de vó; gosto de tempero de mãe; cheiro de infância; sabor de antigamente... E por aí vai.

Na redondeza do inacessível também está o gosto da gente por gente. Quando aquele jeito insuportável em qualquer uma não é suficiente para nos afastar de uma pessoa em particular, atenção! Capaz da gente tá gostando da criatura. E quando a gente tem vontade de fazer (ou quando vê até já fez!!!) coisas antes feias, nojentinhas ou proibidíssimas em nosso manual de etiqueta sexual, aí não tem mais dúvida: estamos entregues ao gosto pela pessoa ou, às vezes, só gosto por safadezas mesmo.

3. PRETO - Entre "diariamente" e batatinha quando nasce

Para elegância garantida: preto!
Feijão de cariocas e fluminenses: preto!
Ford dos primeiros tempos: preto!
Ouro de levantes Gerais: preto!

Gato de encantamentos: preto!
Galo de encruzilhadas: preto!
Fora dentes e olhos, leopardo: preto!
O sim ou não da zebra: preto!

Gil para dona Canô:
O Preto que Caetano gosta.
Síntese de todos os pigmentos,
oco de toda luz.
ébano, negro, retinto, preto!

2. IMPUREZA - "Eu, filho do carbono e do amoníaco"*

Primeiro era um ponto branco, na amídala esquerda... Tenho certeza, porque minhas encrencas de saúde são sempre do lado direito (até as infecções de garganta). Um tantinho de água a mais, mel, frauda no pescoço na hora de dormir (um espetáculo com o meu pijama azul de decote em "V"!!!). Achei que não passarai disso. Ledo engano: o ponto branco se multiplicou por três; o branco evoluiu para dourado; mais dois dias e a voz sumiu, enquanto uma torneira de pus foi aberta mais ou menos na altura do terceiro olho, com canalização direta para as narinas e, se deitado, com desvio para a goela e estômago. Mais um pouco e a febre pontualíssima, de meio-dia para a tarde, fritava o pus que era expulso do nariz, a partir de então, em tamanho e ares de panqueca. Tudo isso antes de começar a tosse, daquelas miúdas, sem catarro e sem trégua. Tosse de cachorro, das que matam de raiva e de sono. Sim, porque você é obrigado a virar a noite sentado na cama, brincando de "estátua". Nesse embalo pensei muito, mas nada consegui escrever sobre impureza.

*Do poema de Augusto dos Anjos.

1. RASGO - A ferrro em brasa

“Aconteceu uma coisa hoje...”, sapecou a moça, quando entreabri a porta de acesso ao prédio onde moro. “O armário despencou... A televisão explodiu... A casa pegou fogo...”: uma saraivada de tragédias salpicou a tela da minha imaginação, como se a parte criativa do meu cérebro tivesse tomado um cutucão de estímulo. A parte vizinha do cérebro, a que cuida de sensatez, fingimentos e polidez se pôs de pé e me fez soltar um “ai meu Deus” em tom de galhofa, como quem não está nem aí.

Sentada de lado, ombros encolhidos, jogando o corpo contra a parede como um bicho acuado, a moça rompeu as comportas: “Queimei-uma-camisa-foi-sem-querer-me-desculpe-isso-nunca-aconteceu-comigo-se-quiser-desconte-do-meu-salário...”. A primeira parte do meu cérebro voltou à cena, “qual terá sido?”, e desfilou meu guarda-roupa, exibindo, como uma criança travessa, um a um, destroços de minhas camisas mais queridas.

“Fica tranqüila... Pensei que tinha sido alguma coisa mais grave... Isso foi um acidente de trabalho”... Simulei um não-me-importar para consolar a moça, cujo corpo, a essa altura, era um Michael Jackson de expressão de constrangimento. Fui saindo a passos lentos pelo corredor e apressei o passo logo que saí das vistas da moça e da mãe da moça, que também trabalha no condomínio e foi quem segurou a filha, exigindo que ela mesma relatasse o acontecido.

Deixei a porta pra fechar depois, joguei a pasta não me lembro onde e fui direto ao cesto onde a moça pensara, inicialmente, omitir o episódio. Foi a bege, de riscas coloridinhas e mangas longas, que eu usava quando queria me exibir com ar de quem está usando uma roupa tirada do armário ao acaso. Na altura do omoplata direito, um rasgo de uns dois centímetros, feito a ferro aquecido um tantinho a mais do que devia, por onde escapou uma revoada de monstros e fantasmas meus, da Lílian e da dona Antônia.