“Aconteceu uma coisa hoje...”, sapecou a moça, quando entreabri a porta de acesso ao prédio onde moro. “O armário despencou... A televisão explodiu... A casa pegou fogo...”: uma saraivada de tragédias salpicou a tela da minha imaginação, como se a parte criativa do meu cérebro tivesse tomado um cutucão de estímulo. A parte vizinha do cérebro, a que cuida de sensatez, fingimentos e polidez se pôs de pé e me fez soltar um “ai meu Deus” em tom de galhofa, como quem não está nem aí.
Sentada de lado, ombros encolhidos, jogando o corpo contra a parede como um bicho acuado, a moça rompeu as comportas: “Queimei-uma-camisa-foi-sem-querer-me-desculpe-isso-nunca-aconteceu-comigo-se-quiser-desconte-do-meu-salário...”. A primeira parte do meu cérebro voltou à cena, “qual terá sido?”, e desfilou meu guarda-roupa, exibindo, como uma criança travessa, um a um, destroços de minhas camisas mais queridas.
“Fica tranqüila... Pensei que tinha sido alguma coisa mais grave... Isso foi um acidente de trabalho”... Simulei um não-me-importar para consolar a moça, cujo corpo, a essa altura, era um Michael Jackson de expressão de constrangimento. Fui saindo a passos lentos pelo corredor e apressei o passo logo que saí das vistas da moça e da mãe da moça, que também trabalha no condomínio e foi quem segurou a filha, exigindo que ela mesma relatasse o acontecido.
Deixei a porta pra fechar depois, joguei a pasta não me lembro onde e fui direto ao cesto onde a moça pensara, inicialmente, omitir o episódio. Foi a bege, de riscas coloridinhas e mangas longas, que eu usava quando queria me exibir com ar de quem está usando uma roupa tirada do armário ao acaso. Na altura do omoplata direito, um rasgo de uns dois centímetros, feito a ferro aquecido um tantinho a mais do que devia, por onde escapou uma revoada de monstros e fantasmas meus, da Lílian e da dona Antônia.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário