domingo, 30 de dezembro de 2012

Um tempo tátil

Graças a um presente do Reginaldo Rosa, ao longo de 2012 revivi uma experiência mágica da minha infância que é retirar a página do dia da Folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que os franciscanos reproduzem religiosamente deste não sei quando. Naquela época me sentia uma espécie de "senhor do tempo", prestando o serviço doméstico de estampar o nome, a cor, o número, a lua, o santo e um cento de outras informações que essa espécie de almanaque espreme em um minúsculo retângulo de papel ordinário, caprichosamente organizado. Nestes últimos meses, especialmente, desvelar a página nova assim que desmontava da cama me dava a sensação de tocar o tempo, imaterial por natureza.

Um detalhe da folhinha que me chama a atenção de modo particular é o balanço dos dias gastos e dos dias restante do ano em curso. Hoje, por exemplo, "-366/ + 0", ou seja, 2012 está nas últimas. Para minha desolação, amanhã não terei um pacote novinho na minha mesa, para curtir o "-1/ + 364". Não terei esse, mas já tenho outro rito, da mesma inspiração: com a mesma sistemática de "- dias vividos/ + dias a viver", tenho registrado no meu caderninho de notas uma sequência do meu ano particular de estágio aqui no Canadá.

Hoje, por exemplo, chego ao 107º dia nessas paragens, como quem chega a uma sexta-feira de semana extenuante. Nada a ver com o dia da semana e menos ainda com meu ritmo corrente de trabalho, dado que estou numa semana de vagabundagem. O "peso" de hoje deriva da saudade da magia que as passagens de ano da minha infância e adolescência costumavam ter. Nos tempos de vacas-gordas, no "dia-de-ano" envergava minha segunda melhor roupa nova, que perdia apenas para a roupa do "dia-de-reis" e era muito mais bonita do que a roupa "de-santa-cecília" e "do-natal". Essas quatro únicas roupas novas de cada ano seriam pouco usadas ao longo do ano novo, porque eram reservadas para acontecimentos especiais, como casamentos, batizados, enterros e outras "festas"...

Por mim, punha a roupa mais bonita já no ano novo, porque nada era mais emocionante do que o apagar das luzes de toda a cidade bem à meia-noite, iluminada por fogos, vivas, seguidos de cumprimentos entusiásticos dirigidos até a desconhecidos. A missa do galo e a procissão de "São-Bom-Jesus" não chegavam nem aos pés em rito, magia e inspiração. Já tive reveillon em Boa Viagem e em Copacabana, mas nada se compara àqueles de antigamente. Certeza que a passagem de logo mais será particularmente "chocha". E sempre me pelo de medo de que a "virada" seja um presságio do ano todo... Misericórdia!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Lá em casa era assim...


Quando criança, morria de inveja das casas que tinham enfeites de Natal. A árvore sobre a mesa de jantar nunca usada de vó Dorica, por exemplo, devia ter uns 30 centrímetros de altura, já era de um verde desbotado desde que eu me lembro, mas isso não tinha a menor importância. Era um deleite ficar olhando aqueles penduricalhos, todos desemparelhados, de formatos os mais variados. Lembro especialmente de uma "bola" (como chamávamos a todas, independente do formato) com cara de Papai Noel (sem corpo) e outra que era uma espécie de melão-de-são-caetano (comprido e retorcido). A campeã de originalidade, porém, era uma bola-guarda-chuva, cor-de-rosa se não me engano.

Lá em casa, porém, a história era outra: nada de bolas, árvores, nem nada. Acho que não é apenas porque fôssemos pobres e, hoje mais que antes, sei o quanto o éramos, com nossa "fazenda" de vacas com nomes próprios, "Mochinha", "Fofinha" e "Morena" - entre as mais famosas. Penso que esse jeito áspero de mamãe nos educar com economia de fantasia deve-se, em grande medida, à dor sem cura da perda da mãe dela, morta quando mamãe, a mais velha de uma prole de oito, tinha apenas 12 anos. Parece que fazer festa, em alguns momentos, significaria afrontar a memória daquela mulher, cujo luto sem fim parecia ser a forma possível de se reverenciar. Parece também que era a forma de mamãe preparar a gente para a hipótese, felizmente não confirmada, de crescermos sem os cuidados dela.

Eu não entendia direito essas coisas, mas sabia que, no Natal ou fora dele, a história da minha avó era assunto proibido, porque fazia sangrar. Por outro lado não estava disposto a viver sem fantasia, então, pegava carona no presépio da Matriz, sempre montado numa espécie de quarto, à direita do altar (e que já não existe mais), além, claro, da "disney" que era a sala de vó Dorica.

Lá pelos dez anos, mais ou menos, gastei minha mesada na compra de um festão prateado, que seria pendurado em forma de arcos, no portal entre as salas da nossa casa de Açúde Novo. Peguei um galho seco, cobri de algodão, fiz uns bolinhos de papel, coloridos com canetinhas e tivemos nossa primeira, e acho que única, árvore de natal. Odiei. Era um horror de feia, mas deixei lá num canto assim mesmo. Vez por outra ainda me volta à memória a perspectiva de quem deitava no safá e assistia o vento girar o festão, como o fuso brilhante de uma casa-de-farinha voadora, pra lá e pra cá.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Uma queda especial pela dança

Fora a notícia do meu nascimento, que arrastou pra casa metade dos convidados da festa de casamento de Zefa-de-Lianor e João-du-Nizo (quem sabe "João Dionísio" de batismo...), não costumo atrapalhar quem se diverte numa dança, porque considero isso um pecado capital. De todas as artes, a dança talvez seja a que mais me tira o fôlego, seja dançando ou apenas deslumbrado de ver quem dança. Por isso mesmo, quando entro em um teatro para ver um espetáculo, é comum fazer uma força extra para que o cérebro registre tudo e, logo, me dá uma tristezinha de saber que vou esquecer parte das cenas.
Felizmente, ainda moram em mim as lembranças do Balé Popular do Recife, numa apresentação feita em São Bento do Una, quando eu ainda era adolescente; a Gisele do Balé Nacional de Cuba, visto na minha juventude, nos tempos vividos em Havana; a coreografia dos ciclos de vida do cerrado, feita pelo Balé do Estado de Goiás, no começo dos anos 1990, quando estava chegando por lá; espetáculos da Quasar Cia. de Dança ainda com Duda Sharma e Luciana Caetano; Maracatu Nação Pernambuco e muitos outros deslumbramentos sem tamanho... Espero, muito sinceramente, que daqui a alguns anos recorde as imagens que o Royal Winnipeg Ballet, RWB, pintou na minha alma, ontem à noite, entre as quais as cenas desta postagem.
 

Era a estreia do clássico "Quebra-nozes" na cidade e eu consegui ir ao espetáculo com pouco mais de uma dúzia de estudantes da escola de inglês que, como eu, além de dança apreciam um bom desconto. A mais antiga e uma das mais prestigiadas companhias de dança do Canadá, o RWB tem um corpo de bailarinos diverso com a cidade, com gente do Japão, China, Ucrânia, Maldávia, México e Brasil, com dois bailarinos: Luzemberg Santana (Paraíba) e Thiago dos Santos (São Paulo), o primeiro recém-chagado e o outro já nesta companhia desde 2008.
Veja um pouquinho dos bastidores desta montagem, em registros do RWB de três anos atrás.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Primeiro ciclo

No dia seguinte à minha chegada em Winnipeg, uma quarta-feira, me apresentei à escola de inglês em que estava matriculado e, confesso, achei meio exagerada a reação da Katia, que seria uma das minhas professoras, que insistiu veementemente que eu não perdesse a aula da sexta-feira, quando pra mim era óbvio ter o terceiro dia dedicado às providências de chegada, entre as quais, comprar um prato e uma caneca.
Corri como um doido na quinta que me sobrava, e fui para a tal aula da sexta. Não consegui cumprir, entretanto, a recomendação de que eu chegasse meia hora mais cedo e, de cara, tomei contato com o lado Rafikova de Katia, que me deu uma descascada federal de boas-vindas, sem concessões e sem meias palavras. Sabão geral. Para não restar dúvida, aproveitou os 15 minutos antes de iniciar a aula, jogando na minha mão mais ou menos 50 páginas copiadas de uma colega que, para aprofundar meu choque, haviam sido usadas nas quatro aulas que eu perdera.
A esta altura, minha mochila foi jogada de uma mesa para outra, indo parar do lado de um adolescente de aspecto indiano, de quem ainda não sabia o nome, com quem compartilhei a mesa nas três horas de aula, suficientes para a generala russa se convertesse de cara, pra mim, em uma excelente professora, dedicada o suficiente para, ao final da aula, investir mais uma hora do seu tempo para me explicar pessoalmente o programa do curso, organizar as 50 páginas em capítulos (reading, writing, vocabulary and critical thinking skills). Além de me fazer uma lista de compras e me ensinar a chegar numa papelaria, dessas boas da gente se perder o resto do dia, não fosse o cansaço e a quantidade de tarefas que tinha já para o final de semana.
Durante o curso, a água foi subindo sem parar, como você deve lembrar, graças às minhas queixas de noites mal-dormidas e domingos enclausurados na biblioteca da universidade... Catorze semanas depois, na sexta-feira passada, foi a hora de celebrar o encerramento do curso e, principalmente, os muitos ganhos que ele me deu, não apenas no domínio da língua inglesa, mas na estruturação do pensamento e na habilidade de redigir observando lógica, consistência e outros rigores acadêmicos. De quebra, entrei para o seletíssimo rol dos alunos com boa nota e melhor repuração junto à professora Kátia Rafikova, de quem vou receber uma carta de recomendação. Arrisquei por tudo a perder, com uma narrativa visual, apresentada na "formatura", para rir um pouco dos apuros desses três meses e, ufa, a história terminou em abraços e gargalhadas cossaco-tupiniquins.


quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O que mesmo o indicador indica?

Do meu longínquo ensino fundamental, que nem assim se chamava, guardo um gosto estranho pelos números, que era a minha preferência, antes de eu me encantar pelas entrelinhas das letras... Um particular que me fascina são os indicadores, que têm o condão de pegar um novelo de complexidades e reduzir a um número, enfiado numa linha e capaz de dizer quem é bom, mais ou menos ou um traste.

Hoje, por exemplo, fiquei curiosão pra saber quem são as universidades que aparecem no topo do IGC (os indicadores têm mais essa tara de se chamarem pelas siglas), no caso, Índice Geral de Cursos, através do qual o MEC faz um apanhado sobre a educação superior no Brasil. Não sou capaz de dizer as variáveis e os pesos que entram no cálculo, mas sei dizer do meu reiterado aborrecimento com a informação de que os melhores se concentram no Sudeste.

A vontade primeira é de esculhambar com o indicador. Depois a curiosidade me vence e termino indo atrás das tabelas completas que os jornais nunca disponibilizam, mas os sites oficiais geralmente sim. Na de hoje é possível ver que a UFG tem um "IGC contínuo" de 3,56 que a coloca no 29º lugar por este critério e a 0,39 dígitos de atingir a nota máxima do indicador e virar notícia nacional. Fui olhar, então, quem ajuda e quem puxa para baixo essa nota. Até onde pude entender o problema está na pós-graduação. Se fosse apenas pela nota dos doutorados, a UFG cairia para a posição 65 e pelas notas dos mestrados para o 68º posto.

Claro que não sei se entendi direito a tabela, nem como se chega a estes números, muito menos como se faz para eles crescerem. Tô doido pra saber o que as pro-reitorias dizem a respeito. Quando sair uma interpretação decente, por favor me avise.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Pirangagem e matutice

"Pirangueiro" é um adjetivo frequentemente usado no Agreste Meridional de Pernambuco para descrever um cidadão parcimonioso quando se trata de despender qualquer soma em dinheiro. Mais espraiado no universo linguístico brasileiro, "matuto", por sua vez, é o qualitativo atribuido à pessoa, geralmente de origem rural, em situação de desconforto social. Ambos de caráter discriminatório, usados em ataques proferidos por consumistas urbanóides. A mistura dos dois, de algum modo, se aplica a mim, por questões de origem, condição e circunstância.

Desde que fiquei uma semana sem dinheiro, logo que cheguei por estas paragens, naquele episódio já relatado da senha bloqueada, estou super, mega, hiper financeiramente precavido. Antes de comprar qualquer coisas, multiplico por dois (pra simplificar a relação real x dólar canadense) e, frequentemente, concluo que é caro e deixo pra depois. Mesmo os itens essenciais passam por minunciosa avaliação. Por isso, até hoje não havia aberto o vinho que comprei pra celebrar o desbloqueio do cartão, porque os abridores de garrafa por aqui estão pela hora da morte...

Hoje, finalmente, aproveitando o gás de ter concluído um argumentative research paper, de 20 páginas em bom inglês acadêmico (até que a professora me devolva na segunda, com um caminhão de críticas) e liberei geral: comprei um sacarrolha com designer futurista, que custou a fortuna de $ 10 dólares. Agora há pouco, junto com um macarrão que é a minha receita número dois de um cardáplio de três pratos, comecei a luta para usar meu novo equipamente. Tentei, tentei e nada. "Que bosta, será que isso não presta?" Depois de arranhar o metal que lacra o gargalo e a boca da garrafa, numa operação de uns bons 10 minutos, me dei conta que a porcaria era apenas rosqueada, sem rolha portanto, e que poderia ter sido tomada umas cinquenta vezes nesses quase dois meses de espera inútil.

Pra completar, claro que o vinho é uma espécie de chapinha canadense e, a partir de amanhã, vou arriscar a minha receita número quatro, que é um arroz roxo, pra lá de esquisito, o único que achei na internet que leva vinho tinto seco e que, não sem razão, por enquanto não tem nenhum comentário ou avaliação... Agora se a professora aprovar meu artigo, "juro-na-cruz-de-Deus", como dizíamos lá em Açúde Novo, que volto naquela adega linda e compro um vinho decente, com rolha e tudo.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Querido papai Noel,

Esse ano quando você e as renas estiverem zanzando pelo céu morno do sul, eu estarei aqui, perto da sua casa, engrossando a batata da perna, como quem atravessa o arreial da Praia do Francês, só que branco, gelado e fundo. Se brincar, bate no joelho.. Já sei que meu humor não vai estar lá essas coisas, por isso adianto para pedir de presente uma duziazinha de cartas. Mas tem de ser de papel, com selo, carimbo e tudo o mais. Se quiser mandar cartão enfeitado pode, mas eu gosto mesmo é de letra. Muita letra. Até garrancheira eu adoro. E pode mandar conversa fiada que eu aprecio também. Como os correios daqui não são lá essas coisas, por favor Noelzinho do meu coração, despache de uma vez as minhas cartinhas, viu?

Lá vai o endereço:
Walderes Brito
428
320 Sherbrook Street
Winnipeg, Manitoba, Canada
R3B 2W6

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

"Honrarás tua mãe..."

Em alguns dias completará um mês que tia Senhora, nossa tia-avô paterna quase centenária, está de casa nova. Dessa vez, coube a Eliane, primogênita da nossa casa, e sua família, edificar a casa de tia no que antes era uma área nos fundos do terreno onde moram. Com este movimento, a quarta geração da nossa família experimenta o prazer e o desafio de conviver com uma mulher cheia de humor, vitalidade, memória e muita teimosia também. A primeira geração foi a do meu avô Jorge, irmão de tia, que a acolheu pouco depois que eu nasci, num tempo de muita penúria em nossa região. Lá pelo meio do caminho, a segunda geração, a do meu pai, minha mãe e minhas tias, em diferentes circunstâncias, fizeram a mesma experiência. Agora é a vez da Eliane e com ela, não apenas a terceira, mas também a quarta geração (meus sobrinhos e sobrinha) tocarem a vida na companhia de tia Senhora.
Em toda essa trajetória, tia tem sido autônoma e trabalhadora ao extremo, ao mesmo tempo em que é uma controvérsia em pessoa: ranzinsíma com uns, humoradíssima com outros, sem nenhuma habilidade ou vontade de disfarçar antipatia ou bem-querer. Como, felizmente, estou na bando dos bem-quistos, um dos meus momentos preferidos toda vez que volto a São Bento do Una, minha cidade natal, é passar horas com tia Senhora, ouvindo as mesmas velhas histórias, contadas com precisão científica, sobre a epidemia que matou a mãe e dois irmãos dela em 1925, as viagens a pé de Pernambuco para Juazeiro do Padre Cícero no Ceará nos anos 1930, os serviços que ela prestava para uma senhora japonesa em São Paulo, nos anos 1950 e os anos que trabalhou vendendo água em lombo de burro, em Garanhuns, na década seguinte.
Também gosto das ciências de tia Senhora, abstraidas da empiria cotidiana, como a teoria de que as hortências ganham as cores do vestido da mulher que as plantou ou a perigosa hipótese de que muito sangue provoca dor nas pernas. Essa última foi concluída depois que ela furou o pé mexendo nos milhões de trecos que são guardados porque "um dia a gente pode precisar" e, depois disso, a dor daquela perna passou. Logo, o que causava a dor era o sangue perdido no acidente: "Dá vontade de furar a outra perna", diz ela. Há também a teoria de que a asa-branca que viveu mais de 15 anos veio a óbito porque ela (tia Senhora) colocou veneno para matar as muriçocas, as muriçocas cairam na gaiola, a ave comeu as muriçocas e morreu envenenada tambem. Já a longevidade do galo-de-campina que já poderia ir para o exército, porque tem impressionantes 18 anos, será assunto para um professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde um dos meus sobrinhos estuda Veterinária, porque fora o método de tia Senhora, ao que parece não há registro na literatura de passarinho com tantas eras.
Toda a minha gratidão a Eliane, meu cunhado e meus sobrinhos que agora abriram a casa para fazer por tia Senhora o que seria igual responsabilidade de uma dezenas de nós outros descendentes, e o meu desejo de que essa convivência seja tão rica e prazerosa como foram os anos em que vivemos juntos, antes de eu me mudar para Goiás, ou as minhas tardes de férias em São Bento transitando nos universos fabulosos dessa mulher absolutamente singular.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Aparando a juba

Depois de muito vexame matinal, por causa de minhas melenas esgadanhadas, graças a uma combinação perigosa de carequice, mais cabelo grande e amassado por uma noite de sono, fui hoje ao salão de beleza. Era uma cabeleireira oriental, mas podia ser até marciana que eu encarava: entrei mesmo foi pelos 10 dólares estampados na porta, que eu ainda acho caro, mas pelo menos está longe dos 25 que eu vi na porta de outro estabelecimento do ramo, que me fez evitar até de passar na rua. Sem falar dos outros que nem estampam preços e isso já é um aviso de que são proibidos para bolsistas carecas.

As instalações no salão de hoje, convenhamos, não são lá muito higiênicas, a começar pelos tufos de cabelo sobre a mesa onde tive de depositar meus óculos. Minha esperança é que piolho não se crie no gelo... "Como você quer que corte?" - Perguntou a moça. "Não tenho muitas opções", sapequei de cá, com meu inglês manco, mas já querendo ser metido a espirituoso.

Chegamos rápido a um consenso de que deveria ser baixo e pronto. No meio do caminho, a checagem de praxe "se está bom" e um novo acordo de que podia cortar ainda mais. "Outros 10 dólares só daqui a dois meses" - pensei... No fim, fiquei com um indeciso topete, parecendo o galo-de-campina de tia Senhora, mas ainda assim acho que amanhã chegarei menos esquisito para a primeira aula.

A possibilidade resolver a paradinha do cabelo com um banho antes de ir pra escola está totalmente descartada. Entre outras coisas, temo o congelamento tácido da penugem que me resta e virar uma espécie de Neimar, com uma crista-picolé formada no percurso de casa para a escola... Melhor não arriscar. Banho, só no final da tarde, com tempo de sobra para ter certeza de que tudo está realmente seco, antes de pôr o pé na rua. Além do mais, como dizia "ti-Mané-Domingo", outro lendário tio-avô da minha coleção, "nunca ouvi falar que ningém morreu de grude; mas de banho, eu já ouvi muito...".

sábado, 3 de novembro de 2012

Matissando os espaços visuais


Uma queixa comum dos visitantes virtuais do meu quarto são as paredes imaculadas que dão ao espaço um ar de cela de presidio recém-inaugurado. Confesso que isso também me incomodava um pouco, menos ao vivo, mais quando via a minha própria imagem enquadrada pela câmera do computador nas conversas com o pessoal de casa... Mas não era assim um incômodo grande o suficiente para me fazer tomar uma providência, antes de 50 dias e dois museus. Ontem, finalmente, tomei coragem de gastar uns cinco dólares com cartolina e fita adesiva e hoje pela manhã, antes de lavar o rosto, sapequei uma obra de arte que vai me servir de cenário para as próximas conversas por skype, tendo ainda à frente da minha mesa de trabalho um painel com as sete fotos que trouxe de casa e que estavam guardadas no envelope até hoje.

A falta de iniciativa sobre o tema se deve a três fatores, os dois primeiros de ordem econômica: (a) O que poderia ser feito sem ter de pagar uma nova pintura do quarto na hora de mudar ou ir embora? (b) O que poderia ser uma boa solução estética e prática, considerando minha fraca desenvoltura no campo das artes visuais: pregar um pano colorido na parede? comprar uma gravura em um museu? comprar papel branco, tinta, pincel e fazer uma pintura? comprar um quadro de avisos e fixar coisas com tachinhas? encher a parede de texto, como a moça/rapaz de "A pele que habito?"... Antes de falar do terceiro fator, preciso dizer que a compra de cartolinas e fita adesiva deve-se, basicamente, ao documentario sobre o pintor francês Enri Matisse (1869-1954), que assisti na Winnipeg Art Gallery, empurrado definitivamente pela visita que fiz ontem ao Manitoba Museum. Cores básicas, nenhuma ordem pre-estabelecida, ampla possibilidade de ajustes e negociação com erros, sem nenhum dano à pintura da parede: era tudo o que eu queria e possivelmente daria conta de executar.

O terceiro fator retardante da minha incursão pelo mundo da arte e da decoração de interiores diz respeito ao meu processo psicológico/ mental/ existencial de instalação nesse novo espaço. Colocar um enfeite na parede tem um sentido de construção de casa, o que, no meu caso, nunca pode ser feito rapidamente, porque significaria um impossível desapego à minha própria casa, quase um desamor e uma traição; finalmente, a fixação de imagens no parede do meu quarto quer dizer também que os justificados receios iniciais foram atenuados e que estou medianamente seguro de que vou conseguir viver aqui o tempo planejado: isso, evidentemente, não poderia ser feito antes do kairós - hora certa, tempo oportuno.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Confesso a Deus todo-poderoso e a vós, irmã/os...


Sou um carola: pronto. Contei. Basta o sapato apertar um pouquinho, minha piedade vem à galope, mais ou menos do jeito que, no auge da minha guerra de independência adolescente, uma lâmpada da cozinha explodiu bem quando eu passava debaixo dela e, sem qualquer controle, soltei um berro de bezerro apavorado: “Mamãe”. Ainda bem que não tinha ninguém em casa pra testemunhar o vexame de, na hora “h”, pedir colo justo da minha maior inimiga da época: dona Maria Auxiliadora. Segredo guardado por mais ou menos 30 anos, claro...
Mais ou menos assim, estou eu, agora, nesse tempo de completa desinstalação, afrouxando as rédeas da laicidade cética e com vontade de, toda manhã de domingo, correr para o colo da mater eclesiae. Primeiro foi aquele episódio do sino na hora de ir ao mercado, que eu já contei... Duas semanas depois, não foi sino nem nada: quis ampliar minha espécie de turismo evangélico, participando do culto da Igreja Anglicana de São Mateus, que fica nos fundos do prédio onde moro. Chegando lá, tive de eu mesmo abrir uma porta monumental, sempre estranhando que as igrejas de cá não tenham as portas abertas (quem sabe por razões climáticas...), subi uma escadaria carcomida e dei de cara com uma mulher de meia idade, óculos de aros pretos e largos, com voz de quem tem faringite ou se comunica em permanente falsete: era a Reverenda Dr.ª Cathy Campbel, viria a saber depois, que me olhou tão fundo nos olhos e me acolheu tão afetuosamente, que as minhas intenções turísticas começaram a ruir.
Daí pra frente veio o culto, uma casula ornada com patchwork, alguns cantos de Taizé e uma liturgia que chegou a ficar estranha de tanto que me era familiar, com alguns deslocamentos, que acredito serem aprovados até pela Sagrada Congregação da Rede Celebra, como, por exemplo, o cumprimento da paz trazido já para o começo do culto e a partilha eucarística de vinho de verdade e pão caseiro, graúdo, reconhecido como tal inclusive pela aparência, ambos compartilhados entre todos os mais ou menos 40 que éramos no primeiro e no domingo passado.

Sim, não segurei a onda: domingo passado fui parar na São Mateus, às 11 horas, como sempre, para escutar mais uma vez, o pedido de desculpas da pastora pela indisponibilidade de microfone e a renovação da promessa de que na quinzena de novembro os cultos voltam para o outro espaço que, se entendi bem, fica no subsolo de uma igreja grande e em reforma, aparentemente sem dinheiro suficiente para tal. Dinheiro, aliás, tem a ver com o segundo motivo da minha fisgada: toda a homilia do primeiro culto foi de mobilização da comunidade para aderir à campanha contra a fome no mundo, com participação de 32 denominações.
Nesse domingo agora, ao invés da pastora, a homilia foi compartilhada pelas três mulheres e um homem, que representaram a comunidade no sínodo episcopal, onde, entre outros temas, foi discutido o desafio do relacionamento com os povos originários e a acolhida de casais homossexuais, aprovada, segundo relato de uma pesquisa, por 78% dos anglicanos destas paragens.

Quer dizer, uma pequena comunidade, que transpira espiritualidade e acolhida, sensível ao sofrimento dos pobres e de outras minorias em direitos, promotora de participação, treinada em uma ritualidade mais para monástica e instalada nas vizinhanças da minha solidão... corro sério risco, de domingo que vem, tomar daqueles mesmos vinho e pão.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

E assim foi o primeiro mês

Há exatos 30 dias estou em processo de instalação em Winnipeg. Nas primeiras semanas as malas pareciam recém-chegadas ou prontas para zarpar e até hoje ainda não montei o painel com as fotos que trouxe de casa. Faz parte do meu ritual de tomada de posse do espaço decidir lentamente que lugar é mais adequado para cada coisa, de modo que, quando um destino seja decretado, em tese, eu não tenha qualquer dúvida sobre o endereço do objeto procurado. No mundo real, isso quase nunca dá certo, claro. Das cinco gavetas da cômoda, por exemplo, a superior e a inferior foram as primeiras a serem ocupadas (não me pergunte por que nessa ordem...), a de cima com tudo que é roupa de baixo, e a de baixo com tudo que é roupa que esperava a hora de conhecer a lavanderia. As do meio, aos poucos foram colonizadas, com o liturgia que essa ocupação requer.

Emissão de carteira de estudante, abertura de conta de banco, inscrição no sistema público de saúde, coratação de internet, aquisição de panelas e víveres ocuparam todo tempo livre das primeiras semanas, incluída aí a maratona para descoberta do caixa eletrônico que converte os dólares americanos em dólares canadenses - única opção facultada pelo meu banco no Brasil em cima da hora do embarque. Na segunda quinzena, já medianamente acomodado, me dei ao luxo de voltar ao caixa eletrônico sem conferir a senha previamente. Não deu outra: pus quatro ao invés de seis dígitos, bloqueei o cartão e, graças a isso, passei o primeiro grande apuro canadense: uma semana de muitos contatos bancários com o Brasil, sem nenhuma cédula na carteira e sem coragem de contar as moedas que restavam na niqueira. Para completar o pacote, justo nestes dias a temperatura despencou e o clima louco de Manitoba que arrastou do paraíso de 20ºC para a neve que eu desconhecia e que não tinha a menor graça sem vintém para comprar luvas e tocas insulares... "Além de queda, coice" - como diz a filosofia rural de tia Senhora. A operação de desbloqueio do cartão continua em andamento, mas eu já estou devidamente agasalhado, graças a operações financeiras improvisadas a exorbitantes tarifas. Agora é ficar esperto com o maldito zilhão de senhas e viver bem e intensamente os outros 11 meses que "faltam" ou que "restam" - como preferir...
 
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Manuelices de Barros e de Neves

A neve é uma chuva que cai em câmera lenta,
com pingos em queda vacilante e espiralada,
que põe temor na volta da escola para casa,
mete as mãos de todo mundo no bolso,
faz das caras brancas um tomate
e do nariz de todos, um metal.

Põe chantilly na face exposta dos bancos,
espreme a multidão nas paredes e
enche as ruas atraversais
de invisíveis moleques traquinos,
atirando na cara dos transeuntes
o gelo mastigado pelo raspa-raspa.

Encanta da janela pra dentro,
borda com swarovskys o capus da gente,
mas põe saco de pão entre as duas meias do noviço
reticente pela impermeabilidade de suas botas,
graças a conselhos de uma alma tropical generosa
ou à pandeguice de uma blogueira desocupada.

Ao fim e ao cabo do primeiro dia,
conforto de chegar em casa,
vaidadezinha de estar inteiro,
novo encantamento com os telhados algodãolhados,
temor quanto às previsões da manhã seguinte
e uma ilusão de que tudo poderá dar certo.




sábado, 29 de setembro de 2012

Tudo bem, mãe: vamos deixar assim!

Com o meu aniversário, comemorado hoje, fechamos todo o ciclo de nascimentos da nossa casa, iniciado com a festa de Everaldo, nascido em 31 de julho, seguido por Cristiany, de 11 de agosto, depois Vanuzia, 19 de agosto e Eliane, 1º de setembro... Além de admirar a fertilidade dos verões na nossa casa, costumamos encenar o game da reclamação das escolhas de mamãe. Não do meu “w”, do “y” da Cris ou do “i” de Nuzia, culpa exclusiva do pessoal do cartório de São Bento do Una; mas dos nomes mesmos, como tais. No meu caso, sempre protesto contra a falta de catolicidade de mamãe, que resolveu homenagear o padrinho dela ao invés de simplesmente olhar na folhinha do Sagrado Coração e me batizar como “Miguel”, “Gabriel” ou “Rafael” – os santos de hoje. “Miguel Brito”, já pensou? Eu ia arrasar...

Pela mesma folhinha, Cristiany poderia ter sido “Lélia” ou “Clara” (ou seja, se daria bem de qualquer forma). Em compensação, Vanuzia poderia ser “Sista”, Eliane “Terenciana” e Everaldo “Demócrito”... Até eu poderia perder um dos três nomes bacanas, para não gerar ciumeira nos outros dois anjos, e acabar virando “Arcanjo”.
 
Por este lado, melhor deixar as coisas como estão e tratar de celebrar a vida, como comecei desde ontem, conhecendo com o pessoal do curso de inglês a simpática Gimli, uma das cidades localizadas às margens do Lago Winnipeg, distante mais ou menos 80 km da cidade de mesmo nome. Veja aí alguns registros da presença Viking no nosso continente, os quais, segundo o pessoal que nos recebeu, seriam os reais “descobridores” da América, no ano mil, portando cinco décadas antes de Colombo.





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domingo, 23 de setembro de 2012

Sinos, meninos/as e texturas

Como sou um cidadão, digamos assim, caseiro, tenho de armar planos para não ficar enfurnado, ainda mais quando tenho o estímulo de ter de me paramentar inteiro antes de por o pé na rua, em qualquer dia ou horário... Hoje, devido ao monte de atividades de estudo, saí para comprar batata e cenoura, nada mais. Na frente do supermercado, porém, havia um senhor templo que, justo naquela 10h30, chamava fiéis para o culto, com sinos suaves como não havia escutado. Resultado: caí no canto da sereia, atravessei a rua e entrei. Dentro, uma luz âmbar, filtrada por vitrais gigantes de ambos lados da nave central, dava um clima de útero, reforçado por uma disposição semicircular dos bancos centenários, com um declive semelhante a teatros de arena, que possibilitam ver tudo e todos de todos os lados, sem fazer esforço algum. Quando começou o culto não restou mais dúvida sobre a razão do órgão de tubo ocupar o lugar do altar-mor das igrejas católicas: na Westminster Church a música tem uma centralidade indiscutível, como seria provada nos hinos entoados pela assembleia, pelo coral ou pelas solistas.
 
Duas curiosidades a mais: o cumprimento da paz foi um momento bem gostosinho das pessoas conversarem de verdade e não apenas cumprirem uma formalidade; e o cuidado com as crianças foi um toque notabilíssimo: elas participaram na primeira parte do culto, junto aos pais, até que o pastor pôs um chapéu de palha e pegou uma vareta com um peixe de cartolina rosa pendurado por uma linha e as convidou para os bancos da frente. Apesar da indumentária, sem afetação ou papagaiada, conduziu a conversa mais delicada de que tenho memória sobre pescaria e sobre o recado de Jesus para “os discípulos pescarem pessoas”. Daí saiu com elas e as outras pessoas da Escola Dominical, pela lateral, enquanto outra pastora ocupava o púlpito para a Liturgia da Palavra, tendo as versões lucana (5,1-11) e joanina (21,1-14) do “milagre da pesca” sido lidas e, depois, interpretada num sermão interessante mas longo de doer.

Saí de lá com um riso de Monalisa na boca, comprei minhas batatas e cenouras e vim preparar meu almoço. Se quer saber, no mercado tinha até coentro, mas esta história fica pra depois.






 

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sobre ruas, comidinhas e micos

Na tarde do primeiro dia, uma semana atrás, depois de tomar um banho gelado, por não descobri por minha conta como fazer a ducha aquecer, fiz o meu primeiro passeio em linha reta pela Portage Avenue, com a ousadia máxima de voltar pelo outro lado da rua. Passei, provavelmente, por todas as instalações da Universidade de Winnipeg, inclusive o prédio principal, com cara de castelinho medieval, jardins impecáveis e um casal de jovens deitados no chão. No fim da caminhada, achei um shopping do qual não registrei o nome e onde não consegui escolher o que comer, apesar de não ter almoçado e ser já 6 horas da tarde. Inapetência resultante das mais de 24 horas de viagem, contando as muitas horas perdidas nos aeroportos de Goiânia, Guarulhos e Toronto. Por fim, tomei um caldo de brócolis no Subway depois de, a muito custo, a atendente compreender que eu estava escolhendo uma sopa e não pedindo para ir ao banheiro...
De lá pra cá fiz muitos progressos: já comi um arroz indiano que fritou meu estômago e uma simpática batata com peixe, servida num sustentável papel com cara (mas não tipo) de jornal. Hoje fiz os meus dois primeiros ovos mexidos, os melhores da minha vida, embora não esteja muito certo se consegui fazer o diabo do saleiro dispensar o tempero necessário à guloseima.



terça-feira, 18 de setembro de 2012

A minha janela vista e as vistas da minha janela

Ô de casa!
Na quarta-feira, 12 de setembro, fui recebido em Winnipeg por um vento de 80 km por hora, que fez do avião folha seca, testando, já de cara, a condição dos meus nervos para as fortes emoções ambientais que se anunciam. Logo, porém, o vento foi tangido pela calorosa recepção da professora Shannon, que não quer ser chamada de “Professor”, “Doctor” ou “Sampert” e que é a simplicidade e a alegria em pessoa. Para me abrir as portas do Lions Manor, minha casa pelos próximos 12 meses, foi chamado o Diego, um salvadorenho que está há um ano em Winnipeg, fazendo Ciências da Computação e que, em espanhol, já me deu todas as dicas de sobrevivência possíveis para uma caminhada de cinco quadras, testando e comendo as rodinhas das minhas malas. Meu quarto é iluminado, espaçoso, acolhedor e fica de frente para a rua principal (Portage Avenue) e pode ser visto pelo Google quando se olha tanto desde a “Express Aproval” quanto desde o “Casa-Loma Building”. Veja aí nas fotos (de fora pra dentro, acima, e de dentro pra fora, abaixo) ou brinque de conhecer a rua em 3D, clicando aqui!

Ô de fora!